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Ângelo abriu a carta e leu o seguinte:

"Respeitável Cura de Monteli.—Desejo e peço a Vossa Reverendíssima que se encarregue de distribuir pelos infelizes da sua pobre paróquia, ultimamente tão vitimada pela peste, a quantia que acompanha esta carta e que se acha dentro de um cofre, por minha mão fechado e sobrescritado a Vossa Reverendíssima. Outrossim, peço que nas suas orações de santo interceda algumas vezes junto a Deus porminha triste alma pecadora arrependida e contrita."

Assinava "Alzira".

Com a leitura daquelas palavras, que pareciam vir do outro mundo, que pareciam vir do fundo nebuloso dos seus sonhos, Ângelo estremeceu todo e fêz-se mais lívido que a própria Alzira, no momento em que ela pela primeira vez lhe surgiu da sepultura. Aquela carta, que um frio sôpro de morte lhe arrojava às mãos, vinha obrigá-lo a pensar nessa mulher já extinta, que tanto aliás o procurava ainda.

Oh! Aceitando aquela missão teria que pensar nela eternamente. . . Teria que envolver seu nome impuro nos sagrados dizeres das suas fervorosas orações!... Teria que falar a Deus a respeito dessa misteriosa cúmplice, de quem êle se não queria recordar nunca, e teria de a fazer conhecida e abençoada por todos os pobres da aldeia, enquanto durasse aquêle dinheiro, fruto da prostituição!

E repeliu o cofre, disposto a não aceitar o encargo.

Mas pensou, antes de proferir a recusa; teria êle porventura o direito de assim proceder?.. . Teria êle o direito de privar os miseráveis de Monteli daquele utilíssimo socorro, que uma alma, sedenta de perdão, lhes enviava do seu leito de morte?. . .

E não seria fraqueza de sua parte, temer tanto ao traiçoeiro inimigo, que o vinha surpreender à noite durante o sono, quando justamente a sua consciência não era responsável pelos seus pensamentos?. . . Pois então a sua fé e a sua confiança em si próprio eram tão frágeis e tão mofinas, que assim covardemente fugia da luta, antes mesmo de começar o combate?

—Não! pensou êle, resoluto, pondo-se de pé e estendendo a mão sobre o cofre. O meu dever será cumprido! Se mais sofrimentos me estão reservados por isso, tanto melhor! tanto melhor, porque mais completa será a minha provação! Maria sofreu muito mais, quando lhe arrancaram o filho dos seus amorosos braços de mãe, para atirá-lo aos cruentos braços de uma cruz!

E, voltando-se tranqüilamente para os outros dois, disse-lhes sem hesitar:

—A vossa comissão, cavalheiros, está terminada. êste dinheiro será discretamente distribuído pelos necessitados, e eu pedirei a Deus pela alma de quem lhes envia a esmola...

O conde e Artur Bouvier fizeram as suas despedidas. Ângelo foi acompanhá-los até à porta, e depois recolheu-se ao quarto, colocando o cofre sobre a mesa.

Despejou-o. O conteúdo elevava-se à quantia de cinqüenta mil francos em várias espécies. O pároco separou logo algumas placas de ouro e prata, para nesse mesmo dia principiar a distribuição de socorros.

Oh! êle, sabia melhor que ninguém aonde aquêle dinheiro deveria encontrar o seu destino!. . . Quantas vezes, pensando em certas desgraçadas famílias de jornaleiros, reduzidas à fome pela poste, não chorou amargamente por nada mais de seu ter para lhes dar?... Quantas vêzes não se privou do mais que restritamente necessário, para que não faltasse o leite a um desgraçadinho a quem já faltava mãe?. . . Quantas vêzes não levou a sua esfarrapada batina à casa dos ricos do lugar, e não lhes estendeu a mão, esmolando para os que choravam de penúria e de frio?. . . Quantas vezes não se privou dos lençóis da cama, para cobrir com êles o corpo dos que gemiam na enxêrga nua?. . .

Sim! Aquele dinheiro ia ser manancial de consolações!... Alzira, se durante a vida cometera muitos crimes, praticara na sua última hora uma ação boa lembrando-se dos desamparados da fortuna.

Mas Ângelo, ao repor as cédulas no fundo do cofre, notou que um longo fio de cabelo louro envolvia-se nos seus dedos.

Tomou-o pelas extremidades e ergueu-o até à altura dos olhos.

Era sem dúvida um cabelo de Alzira!. . . considerou ele, perturbando-se. Era um triste e perdido raio de um sol que para sempre se apagara!. . .

E deteve-se a fitá-lo, embevecido de saudade.

Oh! por que Deus fizera assim longos os cabelos da mulher?. . . Por que lhos dera tão grandes e tão abundantes, se ela já não precisava deles, como outrora a Eva no Paraíso, para esconder a nudez de seu pudor?. . .

E continuava a fitar o tênue fio de ouro, perdido num dédalo de cogitações, que o arrebatavam para o mundo ideal das suas loucuras. Mas um sopro de brisa entrou pela janela do jardim e arrebatou-o dos dedos.

Ângelo acompanhou-o com a vista. O dourado fio de cabelo ondeou no ar, espreguiçando-se, e subiu ainda, para depois voltar de novo lentamente, até ir cair afinal sobre os brancos pés da imagem de Maria.

O pároco não se animou a reavê-lo, nem enxotá-lo daquele sagrado asilo.

Quem saberia, pensou ele, se Alzira, que já não tinha lábios, nem olhos, para suplicar, não houvera, do fundo do seu eterno desterro, mandado um fio dos seus cabelos transmitir à Virgem o voto do seu arrependimento?

E voltou à mesa, assentou-se, e, tomando o cofre entre as mãos, começou a considerá-lo atentamente. Era um lindo objeto de luxo, uma boceta de ébano com incrustações de ouro, e guarnecida de artísticas miniaturas em marfim, que representavam assuntos mitológicos.

Em cima, na tampa, havia o nome da cortesã, cercado de flôres e borboletas.

Ângelo continuou a admirar o bonito estôjo, voltando-o de todos os lados, abrindo-o e fechando-o repetidas vezes.

Mas de repente, estremeceu e repeliu-o, torcendo o rosto para não vê-lo.

Tinha descoberto, entre um grupo de anjinhos e cupidos côr-de-rosa, um pequeno oval de meia polegada com um delicadíssimo retrato de Alzira, primorosamente trabalhado, e de uma semelhança inexcedível.

Não quis vê-lo; voltou as costas ao cofre. Mas seus olhos instintivamente procuravam a formosa miniatura.

E o mísero compreendeu e pressentiu que aquêle retrato, era mais um inimigo que lhe invadia traiçociramente o espírito.

I X

Misérias do coração

O resto desse dia passou-o Ângelo em piedosas visitas aos pobres de Monteli. Só ao cair do sol tornou à casa, prostrado de fadiga e torturado pelas suas favoritas agonias.

Salomé trouxe-lhe o jantar, em que ele, como de costume, mal tocou, para recolher-se logo às suas orações defronte do altar da Virgem.

Às sete horas deitou-se cansado e adormeceu logo, precipitando-se no sonho, como se acordasse da vida.

Alzira esperava lá por ele.

—Ah! enfim! exclamou ela, abrindo-lhe os braços e apresentando-lhe os lábios. Tremia com a idéia de que te demorasses! . . . Não imaginas como estava impaciente por tornar a ver-te!. . . A imobilidade a que me vejo condenada durante as horas do dia, é para mim indefinível tormento!. . . Maldita seja a sepultura!. . .

—Mas eu me não demorei!. . . observou Ângelo. Adormeci pouco depois de anoitecer... Não seriam mais de sete horas quando. . .

—Tens razão. Não percamos tempo! Partamos. Os cavalos chamam-nos à montaria, escarvando a terra . . .

—Onde vamos nós?. . .

—A um lugar esplêndido. Sigamos!

Montaram e partiram desenfreadamente como na véspera, varando a alma trevosa da noite.

Galoparam! Galoparam!

No fim de algum tempo, Alzira chamou a si as rédeas do seu cavalo.

—É aqui, disse. Chegamos afinal!

Os dois apearam-se.

Achavam-se na estreita garganta de uma sombria serra, onde nenhum rumor de fôlhas se escutava.

—Andemos, disse ela.

Ângelo obedeceu.

E seguiram caminho avante, por entre um pedregal de serros e cabeços silenciosos, que se perdiam no céu, escondendo-lhe as estrelas.

O caminho fazia-se cada vez mais escuro, mais penhascoso e íngreme. Era já necessário aos dois ampararem-se um no outro, para que não rolassem juntos por aquêles precipícios.

Afinal, penetraram num vale, fechado entre rochas negras e gigantescas, em tôrno das quais giravam aflitivamente sinistras aves, que corvejavam e gemiam, como se a cada instante rasgassem o peito nas arestas da pedra.

Era um convulso redemoinhar sem tréguas, lembrando um irrequieto bando de gaivotas, a doudejarom sobre as águas, no alto mar, quando a tempestade se aproxima, abrindo as longas asas prendes e agoureiras.

—Que diabo vimos nós buscar aqui?! perguntou o sonhador, intimidado por aquêles loucos gemidos que singravam no espaço.

—Viemos buscar dinheiro. . . respondeu Alzira.

—Dinheiro?... Para que dinheiro?...

—Ora essa! Para tudo! com dinheiro teremos prestígios nos lugares que vamos percorrer!

E avançando alguns passos, mostrou ao companheiro uma grande pedra encravada no rochedo.

—Vês esta pedra? disse ela. É a porta das cavernas do Ouro. Nesta misteriosa gruta acha-se encerrada tôda a riqueza dos avarentos já mortos, entesoura-se aí todo o ouro dêsses miseráveis, que em vida sofrem as mais duras privações, para acumular dinheiro sem proveito de ninguém!

—E como vieram parar aqui tôdas essas riquezas?... indagou Ângelo.

A cortesã explicou:

—Por intermédio dos herdeiros pródigos e das mulheres da espécie a que pertenci no mundo dos vivos. Por minhas mãos passaram muitos e muitos milhões, que aqui caíram, derramados em longas e ruidosas noites de orgia. Esta esplêndida caverna é o tormento das almas amarelas dos usurários. . .

—E ao mesmo tempo é o teu banco. . . faceciou Ângelo.

—Justamente, tornou Alzira. Quando preciso de dinheiro, venho buscá-lo aqui.

—E estas aves, porque esvoejam em tôrno da montanha, e por que soltam assim uivos tão tristes?. . .

—São as almas dos avarentos. . . Rondam, noite e dia, sem cessar, o tesouro que já não podem possuir e que ainda cobiçam. Atrai-as o cheiro do dinheiro! Deixa-as lá, míseras que são!

E Alzira encaminhou-se para o pedregulho que fechava a gruta, e tocou sôbre êle com a sua linda mão côr de nove.

A pedra afastou-se incontinenti, e uma fulgurante abertura fêz-se defronte da cortesã, jorrando luz como a bôca de uma fornalha.

As aves que rondavam a montanha, assanharam-se e logo se puseram a rodopiar com mais fúria, multiplicando os uivos e os gemidos.

Ângelo adiantou-se deslumbrado, olhando para dentro daquela esplêndida galeria de ouro e pedras fulgurantes.

—É maravilhoso! exclama êle. É surpreendente! Oh! quanta riqueza! Que interminável tesouro!

E olhava, fascinado.

A galeria, plana embaixo e por cima abobadada, firmava-se em colunas de ouro. O chão era calçado de moedas de todos os países; de espaço a espaço erguia-se um repuxo também de ouro, donde espipava ouro líquido que se derramava, entre rocas de esmeralda, formando reluzentes lagos nunca secos. Do teto pendiam estalactites de ouro, de coral e de topázio. As paredes cintilavam num delírio de fogos multicores, em que fulguravam diamantes, safiras, rubis, opalas e cornalinas.

— Oh! Que deslumbramento! exclamou Ângelo, sem desviar os olhos da refulgente caverna. Que grande maravilha!

—Não tão grande, opôs-lhe Alzira, procurando com os lábios alcançar-lhe a bôca; não tão grande como o amor que me inspiraste!

Ângelo não lhe ouviu as palavras, nem recebeu a carícia que ela lhe oferecia. Tôda a sua atenção era para a sedutora caverna.

—Não me escutas, meu querido amor?. . .

Êle, em vez de responder, perguntou àvidamente:

—Eu também posso levar daqui o ouro que quiser, não é verdade?. . .

—Não, disse Alzira entristecendo; não podes carregar daqui com um grão de ouro. . . Eu, sim!

—Por quê?

—Porque nunca fôste perdulário... Ah! mas descansa que nada te faltará!. . . Estarei sempre a teu lado, e sempre terás à mão a minha bôlsa.

Ângelo abaixou os olhos, empalidecendo.

— Que tens, meu amor?. . . interrogou a amante. Sentes-te mal? . . . Fala.

—Nada!...

E cerrou os punhos, rilhando os dentes.

—Oh! cala-te! Terrível sentimento apodera-se do meu coração! Sinto-me ambicioso e ávido de riquezas! Desejo ser o único dono de todos aquêles tesouros que ali estão acumulados! E esta cobiça me faz estalar o cérebro' Tenho o sangue a escaldar! Tenho febre! Tenho febre!

—Empalideces! Ó Ângelo! Ângelo! não te preocupes com o ouro! Pensa em mim, que sou a tua riqueza!

Êle, afastou-a com o braço.

—Sofro! sofro nêste instante! acrescentou. Faz-me mal a vista de tanto ouro! Tenho vertigens! Desejava agora ser mil vêzes milionário e ter tôdas as grandezas da terra!

—Ângelo! Ângelo!...

—Oh! deixa-me! Afinal não passo de um pobre aventureiro, sem o menor prestígio, sem ter sequer um nome de família! não passo de um miserável, sem passado e sem futuro, uma sombra de homem, sem esperanças e sem saudades! Não sou ninguém! ninguém!

—És muito, és tudo, meu amor, és tudo, pelo menos para mim! exclamou Alzira, tentando inùtilmente chamá-lo a seus braços. Que te importam o futuro e o passado, se tens o presente, que sou eu?. . . Riquezas e grandezas! mas tudo isso não vale o ser amado como eu te amo, meu Ângelo!

—Não! Não! Quero ir morrer lá dentro, afogado naquelas voragens de ouro!

E, desprendendo-se dos braços dela, precipitou-se para a caverna.

Mas uma resplandecente figura, de longas barbas e cabelos de ouro vivo, cortou-lhe a passagem, colocando-se à entrada da grata.

—Era o Demônio de Ouro.

Vinha cintilante da cabeça aos pés, e o diadema, que lhe guarnecia a fronte, refulgia como um sol.

—Para trás! disse êle a Ângelo. E presta tôda a atenção ao que vais ouvir!

O ambicioso abaixou o rosto e recuou dominado.

O opulento gênio avançou alguns passos e disse, tocando no ombro da cortesã:

—Alzira! continuas então a vagar durante a noite pelo mundo dos vivos, em vez de jazeres tranqüllamente na tua sepultura?. .

—Cala-te, por amor de Deus, que essas palavras desconsolarão o meu amante, se as ouvir. ..

—Volta de vez para o túmulo! . . .

—Não! A minha sepultura é tão fria e eu morri tão môça... que, à noite, quando os vivos dormem, preciso vir aquecer-me nos braços de Ângelo. .. Não é assim, meu amor?. . . acrescentou ela, indo ter com o companheiro.

Êste, porém, não respondeu, nem desviou os olhos das riquezas da caverna.

—E êle te ama?... perguntou o demônio à cortesã.

—Adora-me! afirmou a interrogada; e por mim ama a vida e os prazeres.

—Queres dinheiro, já sei, tornou aquêle. Entra e enche-te à vontade. Leva o que quiseres; tudo o que levares, voltará multiplicado!

Alzira entrou na gruta. Ângelo quis acompanhá-la; o gênio de Ouro deteve-o de novo.

—Espera! Ouve! disse.

E tomou-o amigàvelmente pelo braço, acrescentando:—Que te falta, ambicioso?.. . Que te falta para sêres feliz?... Tens mocidade e dispões da bôlsa de Alzira, a quem é permitido fartar as mãos neste inesgotável tesouro! . . .

—O que me falta? volveu Ângelo. Falta-me tudo! falta-me o poder absoluto! Queria ser um homem tão poderoso, que a um gesto meu o mundo inteiro se curvasse submisso e escravo!

—Por pouco que desejavas ser Deus!

—Oh, não! Não me fale em Deus! Não lhe invejo a grandeza! Queria uma glória mais humana, queria ter as conquistas de César e Alexandre, ligadas ao genial prestígio de Homero e Dante!

O demônio sorriu, mostrando os seus dentes de ouro luminosos, e replicou depois, fechando de novo a fisionomia:

—Não posso satisfazer tanta ambição!... Conquistam-se tronos, como verá teu espírito no século futuro, porque um homem virá ao mundo, e mesmo em França, tão atrevido, que com a ponta de sua espada descobrirá as régias frontes, para guarnecer a sua cabeça de soldado com uma coroa de imperador. . . Sim! conquistam-se coroas de rei, mas não se conquista a coroa de louros do mendigo de Tebas, porque essa não cabe em nenhuma outra cabeça. Falaste em Dante!. . . faze tua alma tão grande como a dêle, e serás o mais desgraçado dos homens... Abre-lhe o cérebro, abre-lhe o peito, abre-lhe os intestinos! encontrarás nessas três regiões do pensamento, do amor e da animalidade, o modêlo dos círculos do inferno, que ele traçou no seu lancinante poema. E nesses círculos só uma força há que os iguala e nivela, é a dor! A dor de quem pensa, a dor de quem ama e a dor de quem tem fome! Queres ser feliz?. . . Vive bestialmente! opõe os teus sentidos ao teu cérebro e ao teu coração! Sê bruto, meu filho! A natureza é um pasto de bêstas—espoja-te nele, se quiseres gozar a vida!

E tirou da cinta um punhal de ouro, que apresentou ao seu interlocutor, acrescentando:

—Guarda esta arma! Defende-te com ela e vencerás sempre!

Ângelo apoderou-se do punhal.

—Obrigado! exclamou. Obrigado! Com esta arma poderei dominar os meus semelhantes!

—Se fôras deveras um ambicioso!. .. Mas não o és, pois ao contrário principiarias por tentar vencer a mim próprio, para te apoderares dos meus tesouros. . . Adeus! Não passas de um ambicioso vulgar!. . .

E recolheu-se à gruta.

Alzira saiu logo em seguida, fechando-se sobre ela o pedregulho da entrada.

Fez-se de novo escuridão completa. As aves recomeçaram a doudejar desesperadas, perseguindo agora a cortesã, como se lhe fariscassem o dinheiro que ela levava consigo.

Alzira, com efeito, vinha carregada de ouro e pedras preciosas.

—Vamo-nos daqui! disse ao companheiro.

E puseram-se a subir a montanha, com os braços na cintura um do outro.

Ângelo ia preocupado e triste.

—Que tens tu?... perguntou-lhe a amante ao fim de algum tempo de caminho.

—Nada! tartamudeou ele.

—Tremes, meu amigo!. . .

—É do frio da noite. ..

E nesse instante saiu-lhes em frente meia dúzia de salteadores armados, cortando-lhes a passagem.

O amante de Alzira mal teve tempo de puxar o seu punhal e passar a amada para trás de si.

—Matem o homem e prendam a mulher, que a quero para mim! ordenou o chefe da quadrilha.

Mas os primeiros bandoleiros que se precipitaram sobre o viajante, caíram apunhalados, rolando a montanha.

—Matem-no, com um milhão de raios! exclamou furioso o chefe, levando a arma ao rosto e fazendo pontaria sobre o assaltado.

O tiro partiu, alcançando um dos bandidos, enquanto mais dois caíram aos pés de Ângelo.

—Ah! bradou o chefe, desembainhando o seu sabre; agora somos apenas um homem contra outro homem, pois veremos qual dos dois fica com esta mulher!

E atirou-se de um salto sobre o adversário, que o esperou na ponta da sua arma invencível.

—Maldito sejas! bramiu aquele já ferido. Hei de matar-te!

—Hás de morrer! tornou o outro, abrasado de cólera. Nunca mais terás olhos para cobiçar a minha amante!

E arrancando contra ele, coseu-lhe o peito a punhaladas.

—Ai! gemeu o salteador agonizando.

—Fujamos! segredou Alzira, puxando pelo braço o companheiro.

—Não! Hei de beber-lhe primeiro o sangue! Hei de beber o sangue de todo aquêle que pretender arrancar-te de meus braços!

E vergou-se sôbre o cadáver, colando-lhe os lábios a uma ferida do peito que sangrava.

—Ângelo! Ângelo! partamos! Olha que aí vem o dia! exclamou a cortesã.

Ângelo ergueu então a cabeça e notou que, com efeito, em volta dele tudo começava a esbater-se à luz da aurora. O próprio cadáver de cuja ferida acabava ele de despregar a boca cheia de sangue, nada mais era do que uma transparente sombra, estendida a seus pés.

E as montanhas foram-se dissolvendo, e outros objetos se acentuando por detrás delas.

E Ângelo, de olhos bem abertos, foi a pouco e pouco distinguindo e reconhecendo o seu modesto aposento de Monteli. Através da tenebrosa paisagem que fugia, viu ele surgirem lentamente as velhas estantes pejadas de livros santos, viu o seu genuflexório de madeira escura e viu surgir o altar, onde a Virgem sorria com o coração atravessado de punhais.

E ergueu-se a meio sobre a cama, tateando os olhos e apalpando a enxerga.

Levou a mão aos lábios e consultou-a depois, tal era o enjoativo gosto de sangue que ainda sentia na bôca.

Os sinos tocavam lá fora, chamando para a missa. Levantou-se, abriu a janela, olhou um instante o aia recém-nascido, e em silêncio preparou-se para sair.

Daí a pouco, o seu trêmulo e negro vulto atravessava a capela, e ia cair ajoelhado nos degraus do altar, arquejando, que nem um libertino depois de uma larga noite de dissipação.

Seus olhos amortecidos, quedavam-se como que indiferentes à própria imagem defronte da qual ia ele celebrar. A sua triste figura, sombria e vacilante, já não era a de um fervoroso crente, a de um sacerdote contrito, mas sim a de um cansado ascético, que não pode nem sabe chorar nem rir.

E os fiéis começavam até a murmurar contra ele, principalmente depois que alguns pares da vizinhança se achavam de passagem em Monteli, aproveitando o tempo para conspirar contra o vigário do lugar.

—Olhe você para aquilo! segredou um dos tais a outro que tinha ao lado! Veja só se aquilo são modos de estar ao altar!... Parece um ébrio! Não é debalde que todos nós estamos prevenidos contra este esquisitão! . . .

—Creio que ele não regula bem da cabeça. . .

—É pancada, ou finge que o é!. . . Mas inclino-me a acreditar que, no fim de contas, é nada menos que um grande velhaco... Você não conhece a história que por aí corre, a respeito deste santinho com a brejeira viúva do morgado de Thevenet?. . .

—Não! Não sei de nada... respondeu o eclesiástico, já arregalando gulosamente os olhos e cheirando sorrateiramente uma pitada.

—Pois deixe acabar a missa, que eu lhe contarei tudo. . . Você vai ficar abismado! . . .

X

Ó louco! Ó louco!

Ângelo nunca fôra amado por grande parte dos seus colegas, e a razão disso estava na inconsciente fortuna com que se iniciou Êle, na vida pública, e no prestígio de santo que logo lhe deram os seus paroquianos.

É assim sempre em todas as classes sociais. Os nossos confrades estão sempre bem dispostos a nosso favor, enquanto não lhes tomamos a dianteira. Todas as flores são poucas para nos atirarem; desde o momento, porém, que os deixamos para trás—não há pedras no chão que cheguem para satisfazer a sua avidez de quebrar-nos a cabeça e as pernas.

Os padres a Ângelo invejavam, menos no que êste realmente era, naquilo que, por moto próprio ou por sugestão de Ozéas, ele desdenhava ser.

Mas o coração de um homem paro é como o sândalo, que perfuma o machado que o decepa. O coração de Ângelo embalsamava a boca dos caluniadores que o mordiam.

Prova-o a tal famosa história, que o padre na capela prometeu contar ao outro, envenenando-a sem dúvida, e a qual tinha afinal a sua base na mais legítima bondade cristã, como se pode ver pela seguinte exposição do próprio fato:

A viúva do morgado de Thevenet era mulherzinha de má nota. Em Monteli falava-se, à boca pequena, a respeito dos seus desregramentos amorosos. Constava mesmo que certa rapariga morrera de desgosto, porque o seu noivo cairá um dia nos braços da maldita, e nunca mais conseguira despregar-se dêles, senão para ser enterrado.

Entretanto, Ângelo, logo nos seus primeiros tempos de Monteli, uma vez, depois de uma das prédicas da quaresma, fôra surpreendido em casa com a visita da

viúva.

Recebeu-a amàvelmente, como a todos recebia.

A mal reputada senhora não procurou rodeios para confessar a profunda impressão que sentira, ouvindo as simples e sinceras palavras do eloqüente pregador, e, tal fôra a súbita vergonha que lhe veio pelas impurezas do seu passado, que àquele pediu encarecidamente para ajudá-la na obra da sua regeneração.

Chorou. E o presbítero compreendeu que aquelas lágrimas não eram fingidas, e que ali estava a seus pés uma alma capaz de convicto arrependimento.

Não hesitou um instante, pôs-se logo à disposição dela, pronto a servir-lhe de guia espiritual. O primeiro conselho que lhe deu, foi que alijasse de si, e de uma só vez, todos os seus antigos pensamentos, e procurasse criar novos, inspirados na moral cristã e no exemplo dos justos, porque, desde que os pensamentos fossem bons, as ações seriam boas conseqüentemente.

Ela prometeu obedecer.

Depois aconselhou-a a que procurasse, antes de entrar na prática da piedade, exercer sinceramente a caridade, como um salutar curso preparatório e caminho mais curto e mais seguro para aquela.

—A piedade, dizia ele, é flor mimosa e exigente; só pode ser exercida com bom proveito, quando o coração de quem a pratica se acha em absoluto estado de paz, e quando se sente feliz e satisfeito consigo mesmo. Sem a inteira harmonia de todos os atos e de todas as intenções, ninguém pode, minha irmã, ser piedoso e justo. A piedade é o perfume da moral religiosa, é o lírio branco e místico do amor pelos seus semelhantes. Sede virtuosa convosco mesma e sede boa para todos sem distinção de ninguém, que a piedade derivará dos vossos atos, como a paz deriva da consciência reta e cônscia do cumprimento dos seus deveres. Ah! se não fora esse inquebrantável apoio, como seria eu o mais desgraçado dos homens! E, no entanto. . . não sou dos mais criminosos. . .

Ela perguntou por onde devia principiar a exercer a caridade.

—Não poderia ninguém desejar melhor ocasião, nem melhor lugar do que êste, respondeu Ângelo. Monteli presentemente é um vale de lágrimas, que clamam socorro. Ide ter com os miseráveis que não têm quem lhes leve aos lábios o crucifixo na hora da morte, ide ter com os órfãos sem regaço que os acolha, e com as donzelas sem defesa e sem forças para guardar a sua virgindade. Socorrei-os a todos, socorrei os desgraçados, indeterminadamente, que, entre os vossos favorecidos, será a vossa própria alma a primeira e mais socorrida pela vossa caridade!

E o presbítero foi em pessoa ensinar-lhe os frios caminhos do desalento e da fome, e conduziu pela mão aquela arrependida ao lugar do sacrifício, da humildade e do verdadeiro amor, isto é, à cabeceira dos que gemiam na miséria e no abandono.

A viúva aprendeu o caminho que lhe ensinara o presbítero. Apaixonou-se pelo bem, dedicou-se de corpo e alma à mais praticante e religiosa caridade e, dentro de muito pouco tempo, oferecia com as suas ações belíssima exemplo de moral e virtude.

E todos começaram a respeitá-la.

Ângelo, encantado com tão completa transformação, dedicava-lhe já uma estima sem limites, e muitas vezes a acompanhava em suas piedosas romarias à casa dos pobres mais remotos.

Mas um dia, dois meses depois que a viúva começara a sua reabilitação, um fato, que precedia de época anterior, veio enchê-la de infinita tristeza e colocá-la no mais vivo embaraço.

Sentia-se grávida.

O último cúmplice de seus passados desvarios sensuais, e a quem ela devia agora aquela dolorosa situação, era um pobre diabo de um boêmio, rico e libertino, que um belo dia lhe fugiu dos braços e nunca mais lhe deu notícias suas.

Ângelo, ao ouvir-lhe a confissão, não teve um gesto de censura, nem de repugnância; era antes a compaixão o que se revelava na sua fisionomia.

—Resigne-se... disse-lhe êle tranqüilamente; e seja boa mãe de seu filho. Não o desampare! Oh! por cousa nenhuma desta vida o desampare! sofra com energia as conseqüências do seu êrro, aceite as represálias sociais que daí procedam, como elementos novos de sacrifício, e continue na obra da sua reabilitação.

E não alterou em nada a estima e o respeito que lhe votava; ao contrário, depois que a infeliz sentia crescer o fruto da sua culpa, Ângelo parecia mais compassivo e mais atencioso para com ela. Ia vê-la, dava-lhe notícias dos seus pobres, encarregava-se de a estes levar socorros em seu nome e, quando orava, pedia a Deus que poupasse à mísera os dissabores que ainda lhe reservava.

Foi naquela célebre noite da tempestade, em que Salomé o esperava com impaciência, que a viúva deu à luz o filho.

Ângelo veio então da casa dela, supondo-a livre de perigo; mas agora, justamente nos últimos dias em que o pároco era vítima dos sonhos com Alzira, a parturiente fora acometida de febre e achava-se em risco de vida.

O fato, logo que transpirou, tornou-se escandaloso. Não se falou noutra cousa em Monteli durante êsses dias.

A viúva, depois de uma noite de delírio, em que repetia sem cessar o nome do presbítero, faleceu nos braços dêste.

Outros padres estavam presentes e cochichavam à socapa, felizes por terem afinal descoberto bom pasto para a sua campanha de difamação. Ângelo, de todo desprevenido contra o mal que pudessem julgar dele, dava ampla expansão às lágrimas que a morta lhe merecia e rezava de joelhos ao lado do cadáver.

Depois do entêrro, o presbítero pensou no pequenito, que assim tão tristemente se orfanava logo ao entrar no mundo, e resolveu, visto que a falecida não deixava parentes, carregar com êle para a casa de uma família pobre, que se quisesse encarregar da sua criação.

Imagine-se o que não fizeram os seus adversários com todo êste, combustível para a intriga.

Por tal modo tramaram e conspiraram contra Ângelo, que o público começou a prevenir-se contra êle, e afinal, quando depois viam atravessar lentamente pela estrada o seu triste vulto contemplativo e enfêrmo, segredavam já em voz brejeira:

—Anda apaixonado!... Não se consola da morte da viúva!. . .

Ângelo seguia em silencio, indiferentemente, sem distinguir o murmúrio da calúnia que lhe esvoaçava em tôrno dos pés.

Mas os seus contrários rosnavam, ameaçando-o:

—Ah! Finges pouco caso?. . . Pois deixa estar que te mostraremos quem pode mais: tu ou nós!

Era bem singular esta luta de alguns padres, apercebidos com tôdas as armas da intriga, contra aquele pobre cura indiferente à maldade humana, caminhando abstrato pelo seu destino, com a alma inconscientemente caída por terra, e os olhos da razão postos no céu.

E, não obstante, os padres lá iam para a frente, ganhando terreno contra Ângelo e agitando de Monteli até Paris os seus estandartes de difamação. Quanto aos romeiros, quanto aos que vinham à casa do presbítero arrastados pela fé no milagre, a esses o sincero pároco falava francamente e dizia-lhes que—Milagres, só Deus os podia realizar, porque a tanto chegava o seu infinito poder; mas que ninguém devia levar tão longe a vaidade, que se julgasse digno de provocá-los ou merecê-los, sem incorrer em desagrado aos olhos do Senhor, que só amava aos simples e despretensiosos.

Que voltassem para os seus lares! exortava-lhes Ângelo, que voltassem para os seus lares!... Os homens para o trabalho que dá o pão de cada dia, e as mulheres para junto dos seus filhos e dos seus deveres de esposa.

—Ah! dizia abertamente, sem armar ao menor efeito. Ah! meus irmãos! quando o lar é abençoado e honesto, não precisa que venham buscar Deus aqui tão longe; Deus irá lá ter espontâneamente e far-se-á lembrado a cada instante. Sejam bons e leais, e Deus será convosco! Não o ofendam, pretendendo que eu faça o que só ele tem o direito de fazer!

Êste modo de proceder era a pior arma que Ângelo podia vibrar contra os seus adversários, porque nentralizava o pábulo da maledicência; mas os molinistas, assim que deram com isso, mudaram de tática e começaram a persegui-lo por outra face.

Um dia o presbítero ficou muito surpreendido, quando na rua gritaram atrás dêle:

— Ó louco! Ó louco!

E, desde então, convenceu-se de que não era amado, nem respeitado, por uma parte da população de Monteli.

De outra vez, depois de ouvir aquelas mesmas palavras, recebeu nas costas uma pedrada.

Voltou-se, abaixou-se e apanhou a pedra.

A certa distancia havia um grupo de rapazes e raparigas, foi até lá e perguntou se era algum dêles, que tinha arremessado a pedra.

Ninguém respondeu.

—Meus filhos, disse Ângelo então; aos loucos não devemos apedrejar, que são êles capazes de cair em raiva. Alguns tenho eu visto aí pela aldeia, a quem até dão pão e dão leite. . .

E passando a mão na cabeça de um dos pequenos, perguntou-lhe, sem cólera:

—Por que me atiraste tu a pedra?

—Era para aquêle cachorro! . . . disse o rapazito, apontando um cão.

—Mentes, meu filho; mas ainda que dissesses a verdade, serias pecador, porque é pecado apedrejar aos cães. . . Perdôo-te por esta vez e aconselho-te a que não cometas igual delito.

Afastou-se, e quando tinha feito algum caminho, ouviu de novo atrás de si:

— Ó louco!

Talvez tenham razão!... disse Êle, consigo, sacudindo os ombros.

E, com efeito, para quem só julgasse pelas aparências, Ângelo figurava um louco. Na terrível palidez do seu rosto, brilhavam-lhe os olhos sinistramente com desvairada expressão; seus lábios, que nunca sorriam, denunciavam fria e profunda angústia, que se não traduzia por palavras; um mistério de sofrimentos havia nas rugas precoces da sua fronte mais branca que o mármore das sepulturas, e os seus gestos eram lentos e como que mal governados, e o seu andar vacilante e frouxo, como o de quem caminha lentamente para a morte. Todo êle era apenas uma estranha sombra que atravessava pela terra, sem se comunicar com ela.

Estava cada vez mais fraco e mais abatido.

E não podia ser senão assim, porque Ângelo sofria muito e não tinha um momento de repouso. Durante o dia era dos seus misteres religiosos e dos seus deveres de piedade, e à noite, quando se recolhia à cama, em vez de descanso, tinha para o martirizar o tormento do sonho.

À noite, ele pertencia a Alzira. A cortesã vinha buscá-lo ao leito, e carregava-lhe o espírito com ela até a manhã seguinte.

E o mais curioso era que, naquelas duas existências, tão opostas e até tão inimigas, o cavalheiro amante da condêssa Alzira conhecia o cura de Monteli e ria-se ìntimamente das ingenuidades dêle ao passo que Ângelo, em mente, detestava o outro e não lhe perdoava as libertinagens e os crimes.

Com o correr dos sonhos, formou-se uma secreta rivalidade entre o padre casto e o licencioso boêmio. Odiavam-se. Cada qual desejava a extinção do rival.

O presbítero, entretanto, a ninguém confiara até aí o segredo das escapulas do seu espírito, e principiava a habituar-se àquele duplo viver de sacerdote virtuoso e de folião profano.

Alzira vinha invariàvelmente buscá-lo, mal fechava êle os olhos, e levava-o de cada vez a um novo lugar de prazeres.

O último passeio maravilhoso daquelas noites deixara-o profundamente impressionado, porque fora de todos o mais comovedor e transcendente, como vai ver o leitor.

Foi assim esse terrível sonho:

XI

Luta de Ângelo com a própria sombra

Ângelo, ao adormecer, viu-se logo à margem de uma formosa baía, cercada de misteriosos arvoredos, por entre os quais se destacavam ao luar os mármores de velhos palácios talhados em estilo veneziano.

Alzira veio buscá-lo numa gôndola côr de prata, guarnecida de brilhantes lanternas verdes. Êle embarcou e sentou-se ao lado dela.

A gôndola começou a deslizar indolentemente sôbre as águas, onde o céu se espelhava todo azul, borrifado de estrêlas, e onde as luzes dos barcos e das janelas ogivais vinham perder-se em trêmulos reflexos de mil côres.

A noite era serena e transparente. Alzira pousou a cabeça no ombro do seu amante, tomou um bandolim e começou a cantar:

As águas tem mil lampejos, Se a brisa cantando vai... Ó mar! bebei nossos beijos! Ó brisas! murmurejai!... Ai! ai! O mar tem alma, É belo o mar! A noite calma Convida a amar! Ai! ai!

Um côro longínquo respondeu noutro tom da margem aposta: Vivam os amantes Cantando aos pares! Voem distantes Negros pesares!

Alzira continuou a cantar, e Ângelo cantou depois de beijar-lhe a bôca:

As águas dormem, querida; A lua brilha nos céus.. . Eu quero beber a vida Num beijo dos lábios teus!... Ai! ai!

E ambos repetiram:

O mar tem alma É belo o mar! A noite calma Convida a amar! Ai! ai!

O côro respondeu agora mais perto, porque a gôndola se aproximara dêle:

Vivam os amantes

Apaixonados,

Morram as dores

E vãos

cuidados!...

E Ângelo achou-se defronte de um lindo alpendre, construído à beira-mar e coroado de verdura e de flôres.

— Saltemos! disse a cortesã, indicando a longa e branca escadaria de pedra batida pelas águas.

E os dois saltaram, galgaram os degraus de mármore, e penetraram num doce e vasto recinto, frouxamente iluminado por balões venezianos.

Ao centro havia um esplêndido tapête desdobrado no chão, com uma ceia servida em baixelas de prata e ouro.

Aí três cavalheiros e três damas, ricamente vestidos e negligentemente reclinados em coxins orientais, bebiam e comiam, em boa camaradagem, a rir e conversar, e meio abraçados uns com os outros.

Mais adiante três damas e um cavalheiro, assentados sabre macias e felpudas peles, jogavam as cartas, entre beijos e gargalhadas.

De outro lado, três moços trajados à napolitana e estendidos por terra, fumavam em volta de um grande cachimbo arábico, e bebiam vinho côr de topázio, que uma bela rapariga de colo nu lhes derramava nos copos de ouro.

Sôbre o cais que dominava a baía, um casal deitado, de peito para o ar, contemplava a lua, ambos quase adormecidos, com a cabeça pousada nos braços um do outro.

Cantavam a meia voz em tom de barcarola:

Tem a vida mil

encantos,

Quando a gente sabe

amar...

Os gozos são tantos,

quantos

Murmúrios há no mar...

Deixa-me a boca

Tua beijar!

A vida é pouca

Para te amar!.. .

Ângelo parara à entrada com Alzira.

—Que bela cousa é o prazer!... disse um dos cavalheiros que ceavam.

E acrescentou, abraçando preguiçosamente as duas damas que tinha ao seu lado:

—E pensar que há por êsse mundo gente que fala em tristezas!.. . As mulheres, as flôres, a música, o jôgo, o vinho e os bons manjares, eis o nosso elemento da vida!. . .

E tomando as mãos da sua vizinha da direita:

—Não é verdade, minha bela, que o prazer é a melhor cousa da vida?. . .

A dama respondeu-lhe com um beijo, quebrando os olhos voluptuosamente.

—Ganhei! disse outro cavalheiro no grupo dos jogadores. Paga!

—Aqui tens! volveu a dama, oferecendo-lhe os lábios, que êle beijou com delícia.

E ela exclamou logo em seguida:

—Agora ganhei eu!

Êle tirou da cinta um punhado de moedas que lhe atirou ao colo.

E continuaram a jogar.

—Entremos! segredou Alzira, penetrando no recinto do alpendre.

—Que lugar encantador!. . . considerou Ângelo, que até aí estivera a olhar para todos os lados, deveras surpreendido.

E fazendo a todos um rasgado cumprimento:

—Boa noite, cavalheiros!

—Vivam, rapazes! exclamou Alzira ao mesmo tempo.

Foram correspondidos indolentemente pelos circunstantes.

Só um dos cavalheiros da ceia voltou-se para êles, e disse-lhes em ar amável:

—Boa noite, gentis namorados. Andais gozando a vida, não é verdade?. . .

—Sim, respondeu Alzira. Temos mocidade e dinheiro: queremos gozar!...

—Sêde bem-vindos! volveu aquêle; não podereis escolher sítio melhor! Aí tendes o que comer e o que beber. .. Tomai assento conosco e sereis dos nossos! Bebei e embriagai-vos, caríssimos:

Ângelo e Alzira assentaram-se juntos num coxim, e o cavalheiro prosseguiu, mal podendo abrir os olhos:

—Aqui as horas correm ligeiras e felizes! Escorregam como um bom vinho!. . .

—Mas quem sois vós?... perguntou Ângelo, levando aos lábios a taça que acabara de encher.

O interrogado explicou logo:

— Somos sectários da religião do prazer: nossa única ambição, nosso único ideal—é gozar! A Sensualidade é o nosso Deus!

— O gôzo pelo gôzo! Eis aí a nossa divisa! interveio um dos outros cavalheiros que ceavam.

E o terceiro acrescentou, emborcando o copo:

—Não conhecemos outra moral, nem outra filosofia!. . . O amor antes de tudo!. . .

—Perdão, objurou Ângelo, tomando interêsse na conversa; isso não e amor, e lascívia. . .

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


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