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¾ Mas olha que o Cearense tem comido o couro ao homem...

¾ Qual comido o couro! O povo é que devia dar uma lição de mestre ao governo, a este governo sem patriotismo e sem critério! E com esta me vou, que isso de política fede... Queres mais alguma coisa?

¾ Olha que demos cabo d’uma garrafa! Nem mais uma gota. Que horas tens?

O outro puxou um relógio de plaquê desbotado, dentro d’uma capa de camurça, e, erguendo-se:

¾ Quatro menos cinco minutos. Safa! O tempo voa! O Zé, bota na conta isto: uma garrafa de branca.

¾ Já cá está, acudiu o Zé Gato, muito sujo, com um dedo amarrado num pano preto, o lápis detrás da orelha , arrastando os chinelos.

¾ ... Na conta do Perneta, explicou João da Mata

E saíram pisando em falso, por entre fardos de carne seca e caixas de cebola.

¾ Ó João, perguntou na rua o aleijado, a menina casa sempre com o tipo?

¾ Quem, a Maria?

¾ Sim.

¾ Casa, mas há-de-ser com o diabo! Sujeitos daquela ordem não me entram em casa...

¾ Mas olha que é um casamentão!

¾ Nem que ele viesse coberto de ouro num palanque de diamante. Ela só há-de casar com quem o padrinho quiser. E adeusinho, menino, adeusinho.

Separaram-se.

Passava um enterro caminho do cemitério. Quatro gatos-pingados, de preto, conduziam o caixão cujos galões cor de fogo luziam ao sol. Pouca gente acompanhando: uns dez homens cabisbaixos, taciturnos, de chapéu na mão, marchavam a passo e passo. Na frente caminhava um padre, de estola e sobrepeliz, olhando para os lados, indiferente, mais um menino de cor de batina encarnada carregando a cruz.

O sino da Sé dobrava a finados melancolicamente. Gente chegava às janelas para ver passar o préstito.

¾ De quem é? Quem morreu? perguntava-se com mistério.

¾ A terra lhe seja leve, fez o Zé Gato, abando a cabeça com um ar triste.

João da Mata parou à beira da calçada afagando a pêra com os dedos magros e compridos, nervoso ¾ Quem morreria? pensava ¾ E, assim que o préstito passou, foi andando devagar, cabeça baixa, equilibrando-se.

No outro lado da rua, o Romão, o negro Romão que fazia a limpeza da cidade, passava muito bêbado fazendo curvas, de calças arregaçadas até os joelhos, peito à mostra, com um desprezo quase sublime por tudo e por todos, gritando numa voz forte e aguardentada:

¾ Arre corno!... Um garoto atirou-lhe uma pedra.

Mas o negro, pendido p’ra frente, ziguezagueando, tropeçando, encostando-se às paredes, torto, baixo, o cabelo carapinha sujo de poeira, pardacento, repetia insistentemente, alto e bom som, o estribilho que todo o Ceará estava acostumado a ouvir-lhe ¾ Arre corno! e que repercutia como uma verdade na tristeza calma da rua.

5

Um tédio invencível, um desânimo infinito, foi-se apoderando de Maria do Carmo a ponto de lhe alterar os hábitos e as feições. Começou a emagrecer, a definhar, enfadando-se por dá cá aquela palha, maldizendo-se. Tudo a contrariava agora, tinha momentos de completo abandono de si mesma, o mais leve transtorno nos seus planos fazia-lhe vontade de chorar, de recolher-se ao seu quarto e desabafar consigo mesma, sem que ninguém visse, num choro silencioso. Estava-se tornando insociável como uma freira, tímida e nervosa como uma histérica. Ia à Escola para não contrarias os padrinhos, para evitar desconfianças, mas o seu desejo, o seu único desejo ser viver só, completamente só, numa espécie de deserto, longe de todo o ruído, longe d’aquela gente e d’aquela casa, num lugar onde ela pudesse ver o Zuza todos os dias e dizer-lhe tudo que quisesse, tudo o que lhe viesse à cabeça. O ruído que se levantou em torno de seu nome incomodava-a horrivelmente, como zumbir d’uma vespa enorme que a perseguisse constantemente. ¾ Que inferno! Todo o mundo metia-se com sua vida, como se fosse uma grande coisa ela casar com o Zuza! Era melhor que fossem plantar batatas e não estivessem encafifando-a . Havia de casar com Zuza, porque queria, não era da conta de ninguém, seu coração era livre como as andorinhas. Oh!...

¾ Mas, menina, quem diz o contrário? perguntava a Campelinho. Eu sempre te aconselhei que o melhor partido era aceitar o amor do estudante.

Não era a Lídia, eram as outras, as invejosas, as brutas, que nem sequer sabiam conjugar um verbo. estava cansada de ouvir pilhérias e risinhos tolos, mas à primeira que lhe dissesse tanto assim (e indicava o tamanho da unha), à primeira que abusasse da sua paciência, ela, Maria, saberia responder na ponta da língua . Umas namoradeiras que punham-se a dar escândalos com os estudantes do Liceu, umas sem-vergonhas! Havia de mostrar!

Ela é que era uma tola, dizia a Lídia; as normalistas falavam de invejosas, mandasse plantar favas. Cada qual namora com quem quer, e, demais, não era nenhuma admiração a Maria casar com o Zuza. Por quê? Porque ele era rico e ela era pobre?

Muito obrigada! Napoleão! tinha-se casado com uma simples camponesa, e mais era um imperador!

E Maria do Carmo passava noites sem dormir, a pensar no futuro bacharel, retratando-o na imaginação, amando-o de longe. Havia já seis dias que ele seguira com o presidente, num domingo.

Que custo, que viagem sem fim! Aquela demora impacientava-a. Já era tempo de terem voltado...

Todos os dias, à noitinha, ia esperar a Província na janela, a ver se encontrava alguma notícia dos excursionistas.

Mas nada!

No domingo seguinte, porém, a folha oficial noticiou que "os ilustres touristes" deviam regressar à capital no dia imediato.

¾ Oito dias! Tê-la-ia esquecido? Oito dias na serra, tomando banhos de cachoeira, passeando a cavalo, caçando, divertindo-se ¾ que excelente vida! ¾ Maria do Carmo sentiu uma alegria deliciosa ao saber que d’aí a vinte quatro horas o Zuza estaria de volta, mais amável talvez, mais nutrido, mais gordo e mais bonito, contando-lhe as minudências da viagem. Agora, sim, conversaria com ele, perguntar-lhe-ia se gostara da serra, se tencionava partir logo para o Recife, se pretendia casar no Ceará...

Nessa noite fez-se muito boa para o padrinho, chamou-o "padrinhozinho", acariciou-lhe os bigodes, sem dar a entender o seu grande contentamento, a sua grande felicidade. Durante o víspora esteve perto dele, acompanhando-lhe o jogo, lembrando quando ele esquecia marcar um número, dando-lhe cafunés no alto da cabeça, com uma solicitude ingênua.

Quando os habitués do víspora retiraram-se, João da Mata chamou a afilhada à alcova, e, muito em segredo, como se fossem velhos namorados, pediu-lhe um beijo na "boquinha". Maria ofereceu-lhe os lábios com uma passividade de escrava, sem a menor resistência, pondo-se nos bicos dos pés, porque João era muito alto, e deixou que ele sugasse-os em dois tempos, às pressas, antes que viesse D. Terezinha.

Grande foi a admiração e a luxúria do amanuense. Maria entregara-se sem um grito, sem um esforço! E suspendendo-a pela cintura, num ímpeto de carnalidade indomável, apertou-a contra si, com força, rilhando os dentes, nervoso, bambas as pernas, o coração aos pulos; mas soltou-a logo. D. Terezinha ali vinha pelo corredor, arrastando os velhos sapatos achinelados. João pôs-se a assobiar de mãos para trás.

¾ Estavam jogando o sério? perguntou a mulher.

¾ Não. Porque?

¾ Tão calados!...

¾ Queria tu que estivéssemos a gritar como doidos? fez o amanuense ainda trêmulo da comoção, enquanto Maria, sem dizer palavra, disfarçava na janela, olhando o céu.

D. Terezinha começara a desconfiar das intenções de João da Mata. Via-o agora muito babado pela Maria, convidando-a sempre para junto de si, perseguindo-a mesmo e notava que a rapariga ultimamente já não era a mesma para ele, evitava-o, fugia de sua presença, esquivava-se como uma gatinha corrida pelo macho.

Um dia, vendo-a triste a uma canto, perguntou-lhe o que tinha. Maria conservou-se calada e séria, sem erguer a cabeça. D. Terezinha quis atribuir aquele estado à ausência do Zuza, mas notou que havia no olhar da afilhada um como ressentimento novo, de momento. Nesse dia, justamente, João esbravejara muito contra a rapariga, ameaçando-a espancar se ela ousasse "pensar" no estudante. Desde então começaram as suspeitas de D. Terezinha que conhecia certas tendências instintivas de João. ¾ De certo alguma coisa se passava ente eles. Esses sobressaltos, essas arrelias... ¾ Entretanto, deixava as coisas no mesmo pé, sem dizer nada. Talvez fosse desconfiança.

E o mais curioso é que o João agora tinha rusgas consecutivas com a mulher, sem motivo, por ninharia, ao voltar da Repartição ou pela manhã antes de ir.

Um belo dia rompeu deveras. João sentiu logo o sangue subir-lhe à cabeça, e, numa excitação violentíssima, num daqueles ímpetos de raiva que lhe eram tão comuns devido à sua natureza irascível, ao seu temperamento bilioso, desandou furioso contra D. Terezinha, arremetendo com a mão fechada, fulo de cólera. ¾ Naquela casa quem mandava era ele, ficasse sabendo! Não aturava desaforos de mulher alguma, quanto mais dela que não tinha nada com sua vida!

¾ E fique você sabendo, acrescentou com sua vozinha estridente, dando murros na mesa. Fique você sabendo que uma mulher amigada é como se fosse uma fêmea qualquer, ouviu? Se duvidar, ponho-lhe no olho da rua!

Palavras não era ditas. D. Terezinha saltou como uma fera congestionada, os olhos acesos d’um fulgor fosforescente, desesperada, possessa, os braços em arco e as mãos nas ilhargas:

¾ Você o que quer é abusar da menina e plantar-lhe um filho no buxo, seu grandis...

Não acabou a palavra, porque o amanuense, ferido no seu amor próprio, na sua autoridade de chefe da casa, cego, tresvariado, encheu-lhe a boca com uma formidável bofetada que fê-la rodar.

Maria ficou perplexa, cosida à janela, muito trêmula, sem saber o que fizesse, muda, como petrificada. Nos seus magníficos olhos cor de azeitona perpassou a sombra d’uma desgraça. O padrinho tinha enlouquecido, pensou. E um pavor infantil tomou-a toda.

Mal acordada dos efeitos da agressão, titubeante, manquejando com a mão no queixo, D. Terezinha foi estender-se lá dentro na alcova, soluçando tão alto que se ouvia fora , na rua.

Defronte, em casa da viúva Campelo, estava formada a panelinha do costume ¾ o Loureiro, a viúva e a afilhada.

Eram quase nove horas da noite.

A Lídia com um pulo veio saber, muito curiosa, o que sucedera, tinha ouvido choro... Se precisassem de alguma cosa...

Mas o amanuense tranqüilizou-a: que não era nada, coisas de mulher, coisas de mulher...

A Campelinho compreendeu que se tratava de assuntos íntimos e rodou nos calcanhares. ¾ Não era nada, era o doido do amanuense que andava aos pontapés.

¾ Gente canalha! fez o guarda-livros inalterável. Que educação, que fina educação, recebia-se naquela casa!

Logo no dia seguinte à chegada do Zuza ¾ uma segunda feira luminosa de Outubro, muito azul no alto, com irradiações no granito das calçadas e uma aragem insensível quase a arrepiar a fronde espessa dos arvoredos da praça do Patrocínio ¾ Maria do Carmo foi recebida na Escola Normal com um chuveiro imprevisto de ¾ parabéns ¾ que as normalistas lhe davam à guisa de presentes de ano. ¾ Parabéns! Parabéns! repetiam arrastando os pés para trás, abrindo alas, como se cortejassem uma princesa. ¾ Tinham combinado saudá-la pela chegada do Zuza com esse espírito irrequieto de colegial despeitado que se apraz em chacotear outro, e talvez com uma ponta de inveja a mordicá-las por dentro.

A praça permanecia numa inquietação abençoada, com seus renques de mungubeiras muito sombrias, verde-escuras e eternamente frescas, a desafiar, frente a frente, a pujança outonal dos cajueiros em flor que os liceistas castigavam a pedradas.

Meninos apregoavam numa voz clara e vibrante:

¾ Loteria do Pará, 30 contos!

O edifício da Escola Normal, a um canto do quadrilátero, pintadinho de fresco, cinzento, com as janelas abertas à claridade forte do dia, tinha o aspecto alegre d’uma casa de noivos acabada de criar-se.

Maria estava radiante! Que extraordinária alegria infiltrava-se-lhe na alma, que excelente disposição moral! Acordara mais cedo que nos outros dias, como se tivesse de ir a alguma festa matinal, a algum passeio no campo, espanejando-se toda numa delícia incomensurável, feliz como uma ave que solta o primeiro vôo. Mas ao entrar na Escola desapontou deveras. Seriam onze horas. O diretor ainda não havia chegado. Raparigas de todos os tamanhos, trajando branco, azul e rosa conversavam animadas de livro na mão, formando grupos, no vestíbulo que separava a sala de música do gabinete de ciências naturais, no pavimento superior.

Maria entrou vivamente alegre, de braço com a Lídia, dando ¾ bom dia! ¾ às colegas, uma bonita orquídea no peito, toda de branco, apertada por uma cinta. Mas a sua delicada susceptibilidade estremeceu ante a insólita manifestação que se lhe fazia, e uns tons de rosa desmaiados, ¾ um ligeiro rubor ¾ coloriram-lhe o moreno claro das faces. ¾ "Aceitava os parabéns, como não? Muito obrigada, muitíssimo obrigada! Queriam debicá-la? Corujas! Fossem debicar a avó!"

Uma gargalhada irrompeu do grupo indiscreto, clamorosa e prolongada.

¾ Meninas! fez a Lídia. Isso são modos!

¾ Olha a baronesa!

¾ Como ela está grande!

¾ Sua incelência...

Maria a custo pôde abafar a raiva que lhe sacudia os nervos. Sentou-se à varanda que dizia para uns terrenos devolutos do lado de Benfica, mordiscando a pelo dos beiços, trombuda, cara fechada, a olhar o arvoredo com um ar afetado de absoluta indiferença.

Continuava o ruído. Havia um jogo contínuo de ditinhos picantes acompanhado de risadinhas sublinhadas. ¾ Uma queria um botão de flor de laranjeira, da grinalda, outra desejava apenas um copito de aluá, ess’outra contentava-se com um beijo na "noiva", aquela queria ser madrinho do "primeiro filho"...

Começaram a atirar-lhe bolinhas de papel.

Maria marcava o compasso com o pé, furiosa, sem ver nada diante dos olhos.

¾ Já basta! disse a Lídia abrindo os braços para afastar as outras. Tudo tem limite. Vocês estão se excedendo...

¾ Umas ignorantes! saltou Maria acordando. Umas idiotas que querem levar a gente a ridículo por uma coisa atoa. Ainda hei de mostrar!...

¾ O diretor, o diretor! veio avisar a Jacintinha, uma feiosa, d’olho vazado, com sinais de bexiga no rosto, e que estava acabando de decorar alto a lição de geografia.

Foi como se tivesse dito para um bando de crianças traquinas: ¾ Aí vem o tutu!

Houve uma debandada: umas embarafustaram pela sala de música, outras pela de ciências, outras, finalmente, deixaram-se ficar em pé, lendo a meia voz muito sérias. Fez-se um silêncio respeitoso, e daí a pouco surgiu no alto da escada a figura antipática do diretor, um sujeito baixo, espadaúdo, cara larga e cheia com uma pronunciada cavidade na caixa do queixo, venta excessivamente grande e chata dilatando a um sestro especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em costeletas compactas e brancas, olhos miúdos e vivos, testa inteligente...

Maria respirou com alívio.

Mas assim que o diretor deu as costas, entrando para o seu gabinete, recomeçou o zumzum de vozes, a princípio baixinho, depois num crescendo.

O sol obrigou-a a fechar o livro. Ergueu-se e foi para a aula, carrancuda, extremamente bela com o seu vestidinho de cassa, apertado na cinta delgada.

Ao meio dia, pontualmente, chegou o professor de geografia, o Berredo, um homenzarrão alto, grosso e trigueiro, barba espessa e rente, quase cobrindo o rosto, olhos pequenos e concupiscentes. Cumprimentou o diretor, muito afetuoso, limpando o suor da testa. E consultando o relógio:

¾ Meio dia! São horas e dar o meu recado. Com licença.

Contavam-se na sala d’aula pouco mais de umas dez alunas, quase todas de livro aberto sobre as carteiras, silenciosas agora, à espera do professor. Maria ocupava um dos bancos da primeira fila.

Ao entrar o Berredo, houve um arrastar de pés, todas simularam levantar-se, e o ilustre preceptor sentou-se, na forma do louvável costume, passeando o olhar na sala, vagarosamente, com bonomia paternal ¾ tal um pastor d’ovelhas a velar o casto rebanho.

A sala era bastante larga para comportar outras tantas discípulas, com janelas para a rua e para os terrenos devolutos, muito ventilada. Era ali que funcionavam as aulas de ciência físicas e naturais, em horas diferentes das de geografia. Não se via um só mapa, uma só carta geográfica na paredes, onde punham sombras escuras peles de animais selvagens colocadas por cima de vidraças que guardavam, intactos aparelhos de química e física, redomas de vidro bojudas e reluzentes, velhas máquinas pneumáticas nunca servidas, pilhas elétricas de Bunsen, incompletas, sem o amálgamas de zinco, os condutores pendentes num abandono glacial; coleções de minerais, numerados em caixinhas, no fundo da sala, em prateleiras volantes... Nenhum indício, porém, de esfera terrestre.

O professor pediu um compêndio que folheou de relance. ¾ Qual era a lição? A Oceania? Pois bem...

¾ Diga-me, senhora Da. Maria do Carmo: A Oceania é ilha ou continente?

Maria fechou depressa o compêndio que estivera lendo, muito embaraçada, e, fitando o mestre, batendo com os dedos na carteira, com um risinho:

¾ Somente uma parte da Oceania pode ser considerada um continente.

¾ Perfeitamente bem!

E perguntou, radiante, como se chama essa parte da Oceania que pode ser considerada continente; explicou demoradamente e categoricamente a natureza das ilhas australianas, elogiando as belas paisagens claras da Nova Zelândia, a sua vegetação opulenta, as riquezas do seu solo, o seu clima, a sua fauna, com entusiasmo de touriste, animando-se pouco e pouco, dando pulinhos intermitentes na cadeira de braços que gemia ao peso de seu corpo.

Maria, muito séria, sem mover-se, ouvia com atenção, o olhar fixo nos olhos do Berredo, bebendo-lhe as palavras, admirando-o, adorando-o quase como se visse nele um doutor em ciências, um sábio consumado, um grande espírito. Decididamente era um talento, o Berredo! Gostava imenso de o ouvir falar, achava-o eloqüente, claro, explícito, capaz de prender um auditório ilustrado. Era a sua aula predileta, a de geografia, o Berredo tornava-a mais interessante ainda. Os outros, o professor de francês e o de ciências, nem por isso; davam sua lição como papagaios, e ¾ adeus, até amanhã. O Berredo, não senhores, tinha um excelente método de ensino, sabia atrair a atenção das alunas com descrições pitorescas e pilhérias encaixadas a jeito no fio do discurso.

¾ "Muitas ilhas da Oceania, dizia ele, coçando a barba, são habitadas por selvagens antropófagos, como os da América antes de sua descoberta..."

¾ "Imaginem as senhoras, que horror! Homens devorando-se uns aos outros, comendo-se com a mesma satisfação, com a mesma voracidade, com o mesmo canibalismo com que nós outros, civilizados, trinchamos um beef-steak ao almoço..."

Houve um casquinada de risos à surdina.

¾ Agora se o Zuza te come, disse baixinho, por trás de Maria do Carmo, uma moçoila de pincenez. Toma cuidado, menina, o bicho tem cara de antropófago...

¾ "E note-se, continuou o Berredo, as próprias mulheres não escapam à fúria das tribos inimigas: devoram-se também..."

¾ Virgem! fez Maria com espanto...

¾ "As senhoras com certeza preferem viver n o Ceará a habitar a Papuásia..."

¾ Credo! fizeram muitas a uma voz.

¾ E no Brasil há desses selvagens? perguntou estouvadamente uma loura que se escondia na última fila, estirando o pescoço.

O pedagogo sorriu, passando a mão cabeluda na barba; e muito delicado, num tom benévolo:

¾ "Atualmente existem poucos... Restos de tribos extintas..."

E continuou a falar com a loquacidade de um sacerdote a pregar a moral, explicando a vida e costumes dos selvagens da Nova Zelândia, citando Júlio Verne, cujas obras recomendava às normalistas com um "precioso tesouro de conhecimentos úteis e agradáveis". ¾ Lessem Júlio Verne nas horas d’ócio; era sempre melhor do que perder tempo com leituras sem proveito, muitas vezes impróprias de uma moça de família...

¾ Vá esperando.... murmurou a Lídia.

¾ "Eu estou certo, ¾ dizia o Berredo, convicto, ¾ de que as senhoras não lêem livro obscenos, mas refiro-me a esses romances sentimentais que as moças geralmente gostam de ler, umas historiazinhas fúteis de amores galantes, que não significam absolutamente coisa alguma e só servem de transtornar o espírito às incautas... Aposto em como quase todas as senhoras conhecem a Dama das camélias, a Lucíola..."

Quase todas conheciam.

¾ "....Entretanto, rigorosamente, são péssimos exemplos..."

Tomou um gole d’água, e continuando:

¾ "Nada! As moças deviam ler somente o grande Júlio Verne, o propagandista das ciências. Comprem a Viagem ao Centro da Terra, Os filhos do Capitão Grant e tantos outros romances úteis, e encontrarão neles alta soma de ensinamentos valiosos, de conhecimentos práticos..."

O contínuo veio anunciar que estava terminada a hora.

Dias depois o Berredo lecionava, como de costume, a seu bel-prazer, derreado na larga cadeira de espaldar, quando o contínuo, fazendo uma mesura, anunciou: "S. Excia. o Sr. Presidente da Província", e imediatamente assomou à porta da sala o ilustre personagem, mostrando a esplendida dentadura num sorriso fidalgo, com o peito da camisa deslumbrante de alvura, colarinhos muito altos e tesos, gravatas de seda cor de creme, onde reluzia uma ferradura de ouro polido, bigodes torcidos imperiosamente: um belíssimo tipo de sulista aristocrata. Estava um pouco queimado da viagem a Baturité.

O Berredo desceu logo do estrado a cumprimentá-lo com o seu característico aprumo d’homem que viajara a Europa. Todas as alunas ergueram-se.

¾ Como passa V. Excia, bem? Estava agora mesmo...

O presidente pediu que não se incomodasse, que continuasse. Acompanhavam-no, como sempre, o José Pereira e o Zuza.

Maria, ao dar com os olhos do estudante, ficou branca, um calafrio gelou-lhe a espinha, baixou a cabeça. fria, fria, como se tivesse diante de um juiz inflexível.

S. Excia. tomou assento entre o professor e o diretor. José Pereira e o Zuza sentaram-se nas extremidades da mesa.

As alunas tinham-se formalizado, muito respeitosas, imóveis quase, de livro aberto, com medo à chamada. Houve um silêncio.

¾ Pode continuar, disse o presidente para o Berredo. E este, inalterável:

¾ V. Excia. não deseja argumentar?

¾ Não, não. Obrigado...

¾ Neste caso...

E para s discípulas:

¾ Diga-me a Sra. D. Sofia de Oliveira, quantos são os pólos da Terra? Veja como responde, é uma pequena recapitulação. Não se acanhe. Quantos são os pólos da Terra?

O Berredo lembrou-se de fazer uma ligeira recapitulação para dar idéia do adiantamento de suas alunas.

Sofia de Oliveira era uma pequerrucha de olhos acesos, morena, verdadeiro tipo de cearense: queixo fino, em angulo reto, fronte estreita, olhos negros e inteligentes.

¾ Quantos são os pólos da Terra? fez ela olhando para o teto como procurando a resposta, embatucada. ¾ Os pólos?... Os pólos são quatro.

Risos

¾ Quatro? Pelo amor de Deus! Tenha a bondade de nomeá-los

¾ Norte, sul, leste, oeste.

Nova hilaridade

¾ Está acanhada, desculpou o Berredo voltando-se para o presidente. Até é uma das minhas melhores alunas. ¾ Não confunda, tornou para a normalista. Olhe que são pólos e não pontos cardeais...

Outro disparate:

¾ Há uma infinidade de pólos...

¾ Ora! Adiante... D. Maria do Carmo.

Maria estremeceu, embatucando também, sem dizer palavra, sufocada. A presença do Zuza anestesiava-a, incomodava-lhe atrozmente. Sob a pressão do olhar magnético do estudante, que a fixava, sua fisionomia transformou-se.

¾ Então, D. Maria?... Também está acanhada?

¾ Passe adiante, pediu o Zuza, compadecido.

Duas lágrimas rorejaram nas faces da normalista ciando com um sonzinho seco sobre a carteira. Estava numa das suas crises nervosas. Outras duas lágrimas acompanharam a primeira, vieram outras, outras, e Maria, cobrindo o rosto com seu lencinho de rendas, desatou a chorar escandalosamente.

¾ Sente-se incomodada? tornou o Berredo. D. Maria! Olhe... Tenha a bondade de levantar a cabeça...

¾ Está nervosa, disse o presidente com o seu belo ar de céptico elegante.

¾ Pudores de donzela, murmurou o diretor. Isso acontece.

O Berredo passou a mão no bigode, desapontado, e encontrando o olhar faiscante de Lídia: ¾ A senhora... Quantos são os pólos da Terra?

¾ Dois: o pólo norte e o pólo sul.

¾ Perfeitamente! confirmou o professor batendo com o pé no estrado e esfregando as mãos satisfeito.¾ Dois, minhas senhoras, disse mostrando os dois dedos abertos em ângulo; dois! O pólo norte, que é o extremo norte da linha imaginária que passa pelo centro da Terra, e o pólo sul, isto é, a outra extremidade diametralmente oposta; eis aqui está! Está ouvindo, D. Sofia? Está ouvindo D. Maria do Carmo? São os dois pólos da Terra!

¾ Estou satisfeito, disse o presidente, erguendo-se.

Arrastar de cadeiras e pés, zunzum de vozes, e S. Excia., grave, correto e calmo, retirou-se com o seu estado-maior.

O Zuza ferrou em Maria do Carmo um olhar tão demorado e comovido que chegava a meter pena. Os seus óculos de ouro, muito límpido e translúcidos, tinham um brilho de cristal puro. Trazia na botoeira do redingote claro (o Zuza gostava de roupas claras) uma flor microscópica.

Alguém murmurou ao vê-lo passar:

¾ Sempre correto!

Maria deixou-se ficar sucumbida, de cabeça baixa, mordiscando a ponta do lenço, com uma lágrima retardada a tremeluzir-lhe na asa do nariz, desesperada, revoltada contra si mesma, que não soubera responder uma coisa tão simples... que vergonha, que humilhação! pensava.

Não saber quantos pólos tem a Terra! E quem havia de responder? A Lídia, logo a Lídia! O Zuza agora ficava fazendo um juízo muito triste a seu respeito e não a procuraria mais... Ah! era muito tola decididamente! E jurava consigo "não ter mais vergonha de homem algum".

Pediu licença ao professor e retirou-se antes de findar a aula para evitar os gracejos das colegas, voltando à casa sem Lídia, sozinha, acaçapada, inconsolável.

Uma vez no seu discreto quartinho, bateu a porta com força, despindo-se às carreiras, desabotoando os colchetes com espalhafato, aos empuxões, impaciente, até ficar em camisa, e atirou-se à rede soltando um grande suspiro. Esteve muito tempo a pensar no acadêmico, na "figura triste" que fizera na aula, em mil outras coisas por associação de idéias, com o olhar, sem ver, numa velha oleografia do "Cristo abrindo os braços e mostrando o coração à humanidade", que estava na parede.

Era uma desgraçada, suspirava tomada de desânimo. Todas tinham seus namorados, viviam felizes, com o futuro mais ou menos garantido, amando, gozando; todas tinham seu dia de felicidade, e ela?

Era como uma gata borralheira, sem pai nem mãe, obrigada a suportar os desaforos d’um padrinho muito grosseiro que até a proibia de casar. Nem amigas tinha. A Lídia essa parecia-lhe uma desleal, fingida, hipócrita; não viram como ela tinha dado o quinau na aula? Uma ingrata... Sim, está visto que havia de ter um fim muito triste...

O verdadeiro era fugir com o primeiro sujeito que lhe aparecesse, fugir para fora do Ceará, ir de uma vez... Estava cansada de viver naquela casa...

E revoltava-se contra os padrinhos, contra a sociedade, contra Deus, contra tudo, num desespero febril, ansiando-se por uma vida feliz, independente, livre de cuidados ao lado de um homem que a soubesse compreender, que lhe fizesse todas as vontades.

Por seu gosto não iria mais à Escola Normal para coisíssima alguma. Estava muito bem educada, não precisava de aprender em colégio, já não era criança.

Acudiram-lhe reflexões absurdas, idéias extravagantes, pensamentos de colegial estouvada, inquieta na rede, virando-se revirando-se, ora fitando com olhar piedoso a imagem de Cristo, ora mergulhando a vista numa telha de vidro, espécie de clarabóia, que havia no telhado, e através da qual brilhava um pedaço do céu sem nuvens.

Começou a sentir uma ponta de enxaqueca e caiu numa madorna, deitada de costas, os braços cruzados sobre a cabeça, traindo a penugem rala das axilas, respirando levemente, como uma criança. A camisa fina, quase transparente, arregaçada por descuido até a parte superior da coxa esquerda, mostrava toda a perna roliça, morena, cheia, sem depressão, arqueando-se no joelho...

6

O primeiro cuidado de Zuza ao regressar da excursão presidencial a Baturité foi ajustar contas com o redator da Matraca, ameaçando urbi et orbi fazê-lo engolir o número do pasquim que trazia versalhada torpe sobre o namoro do Trilho de Ferro.

No Ceará não havia outro homem que usasse flor na lapela, dizia; o estudante, filho de titular, que andava a cavalo mais o presidente da província, era ele, Zuza. Estava claro, claríssimo, que a diatribe, o insulto, a infâmia, referia-se à sua pessoa, e o único meio, simples, fácil e positivo, de se ensinar um patife é dar-lhe de rebenque na cara. Conclusão: o redator da Matraca não só ia engolir o papelucho, mas também apanhar de rebenque no focinho, custasse o que custasse.

¾ Grandíssimo canalha!

— Mas no Ceará não se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. O insulto nesta terra é um divertimento como qualquer outro, como o entrudo, por exemplo. Cada cidadão aqui é uma verdadeira Matraca, Não te importes, não te dês cuidado...

Isto dizia-lhe o José Pereira na redação da Província, mas o Zuza recalcitrava:

— Eu?! Hei de tomar um desforço, custe o que custar. Se é costume desta terra os indivíduos se insultarem mutuamente, com a mesma facilidade com que tomam uma xícara de café, pílulas! é preciso dar ensino, é preciso que alguém se levante!

— É bobagem, filho. Toda a gente toma a defesa do réu e aí fica a vítima do insulto com cara de besta. É o que é. Lá diz o rifão: quem não quer ser lobo...

Esse José Pereira, fisicamente, dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo da Escola Normal. Alto, cheio de corpo, trigueiro, a mesma barba espessa negra cobrindo quase todo o rosto, os mesmíssimos olhinhos vivos e concupiscentes. Dele é que se dizia que fora surpreendido em flagrante adultério com a mulher do juiz municipal no Passeio Público, um escândalo que por muitos dias serviu de pastos a boticários e bodegueiros.

Começara vida pública no Correio, como carteiro, e agora aí estava feito redator da Província, em cujo caráter tornou-se geralmente admirado por seus folhetins alambicados, que o público digeria à guisa de pastilhas de Detan. Aos sábados publicava no rodapé do jornal fantasias literárias, contos femininos em estilo 1830, histórias dissolutas que eram lidas com avidez, mesmo com certa gula pelo mulherio elegante e pela burguesia sentimental e piegas.

Cedo José Pereira começou a inchar como a rã de La Fontaine e a julgar-se, com efeito, um grande escritor, "um talento", capaz, olá! muitíssimo capaz de fazer as delícias de qualquer sociedade inteligente e ilustrada. Daí certo ar autoritário, certa prosápia que ele afetava em toda a parte, dizendo-se "contemporâneo de Rocha Lima", "amigo de Capistrano de Abreu"; certo aprumo pedante que não condizia com sua velha sobrecasaca de diagonal cujo estado incomodava deveras a alta sociedade cearense.

Que diabo! um sujeito inteligente, com ares de fidalgo avarento, redator de um jornal, sempre trazendo a mesmíssima sobrecasaca! E o chapéu? Sempre o mesmo também, um triste chapéu de feltro com manchas oleosas! Oh! a respeitável sociedade cearense exigia primeiro que tudo decência no trajar, e aquilo assim, aquela sobrecasaca sórdida escandalizava-a como se escandaliza uma donzela diante d’uma estátua nua. Pois o Sr. José Pereira não podia, sem grandes sacrifícios, comprar um fato novo? Então, que diabo! não aparecesse entre as pessoas de certa ordem, ficasse em casa, fosse mais modesto. Sim, porque todo homem de talento, na opinião da sociedade cearense, deve acompanhar a moda em todas as suas nuances, em todos os seus requintes, deve ter sempre uma casaca à ultima moda, conforme os figurinos, para os "momentos solenes"; deve ser enfim um sujeito "correto" na acepção mais lata da palavra.

O Sr. Pereira sabia dar um laço na gravata, lá isto sabia, e também não ignorava como se calça uma luva; mas (e isto é que preocupava a sociedade cearense) o Sr. José Pereira, quer fosse a um baile de primeira ordem, quer fosse a uma festa inaugural, quer fosse ao teatro, levava sempre, invariavelmente, a mesma sobrecasaca surrada e o mesmo chapéu ruço! Um homem de talento, sem gosto, o que não se admite. A sociedade cearense, porém, ignorava que o Sr. José Pereira era casado, tinha filhos e ganhava apenas o essencial para o seu sustento e o da família. cento e cinqüenta mil réis por mês, uma ninharia.

Os seus amigos, às vezes, gracejando, propunham-lhe abrir uma subscrição para a compra de um paletó novo e de um chapéu idem. José Pereira, porém, tinha espírito e respondia-lhes ao pé da letra, mudando logo o rumo da conversa.

Nesse tempo o redator da Província ainda era calouro em política. Dava o seu voto e nada mais. A literatura é que o absorvia. Um livro novo era para ele a melhor novidade: caísse embora o ministério, rebentasse uma revolução, ele conservava-se a ler, virando páginas, devorando a obra como um alucinado, defronte do abajur de papelão, no seu modesto gabinete de escritor pobre. Conhecia Dumas pai de cor e salteado; fora o seu primeiro "mestre". Depois entregou-se a ler os Miseráveis, declarando-se hugólatra incondicional em uma apreciação que fizera do grande poeta. O artigo concluía deste modo:

"Vitor Hugo é o Cristo da legenda transfigurado em profeta moderno. Ele é todo um século. Tudo nele é grande como a natureza. Os Miseráveis são a apoteose de todas as misérias humanas. Vitor Hugo, o Mestre, é o Sol da Humanidade. Amemo-lo como a um Deus!"

Isso produziu efeito entre os literatos contemporâneos, que não dispensaram elogios ao "valente folhetinista" da Província.

A fama de José Pereira encheu depressa toda a cidade. Dizia-se — "aí vai o José Pereira!" como quem diz — "aí vai um gênio!" E ele saudava a todos convictamente, tocando de leve a aba mole do chapéu preto de massa.

Em fins de 1886 José Pereira conservava-se ainda na Província, como um dos principais redatores. A sua fama não decrescera, era a mesma, com uma pequena e insignificante diferença — é que ele já não era simplesmente um "talento fecundo", mas também um fecundíssimo canalha, um requintado "sedutor de mulheres casadas", o que afinal de contas não o prejudicava assaz no conceito do mulherio. Havia as viúvas, casadas e solteiras que o defendiam tenazmente.

Não, diziam elas, o diabo não é tão feio quanto o pintam. José Pereira podia ser um rapaz alegre, divertidíssimo, jovial e espirituoso, amigo das mulheres — vá, mas, em suma, um excelente rapaz e um belo caráter. Porque o fato d’um homem apaixonar-se facilmente por muitas mulheres ao mesmo tempo ou em épocas diferentes não quer significar que esse homem seja um sedutor e um patife. Demais, José Pereira era artista, e o artistas, escultor ou poeta, pintor ou músico, não pode compreender a vida sem o amor...

  • Mas é um homem casado, profligavam as outras.
  • Bem; mas o casamento...

E demonstrava que o casamento, longe de ser um atentado contra o livre arbítrio das partes, é, ao contrário, uma instituição que concede, tanto ao homem como à mulher, plena liberdade de amar ao próximo como a si mesmo.

Entre as que adotavam a prática destas teorias tão abstrusas quanto originais, distinguiam-se a mulher de João da Mata e a do Dr. Mendes.

— Então, decididamente, queres quebrar a cara ao redator da Matraca! dizia ele ao Zuza.

— Mas que dúvida!

Quem quer que fosse o verrinista havia de ficar sabendo de quantos paus se faz uma jangada.

— Mas olhas que é uma imprudência pueril, homem. Quando o insulto vem de baixo a gente deve responder com o desprezo. O desprezo é a arma invencível dos espíritos superiores. Eu é como tenho resolvido as questões desta natureza.

— Qual desprezo! Não se mata com desprezo um réptil venenoso; pisa-se-o, reduz-se-o a papas. Isto é o que fazem os espíritos superiores. Sabes —quem é o biltre?

— Homem , francamente, confesso-te que não o conheço. Dizem ser um tal Guedes, vulgo Pombinha, um sujeito reles, um trocatintas, um miserável que nem vale a pena de um escândalo...

— Não vale a pena? Quebro-lhe a cara, ora se quebro... Onde fica tipografia do jornaleco?

— Na rua de São Bernardo, creio eu, uma espécie de toca imunda, com ares de latrina

— Guedes (Pombinha) ... rua de São Bernardo. Muito bem!

E o Zuza tomou nota no seu canhenho, guardando-o resolutamente.

— Diabos me levem se eu não faço uma estralada hoje.

Mudando de tom:

— Quero que publiques hoje o meu soneto A volta; deve sair hoje infalivelmente.

— É dedicado à mesma?

— Certamente. Sabes que eu sempre fui muito correto nos meus amores. A pequena está pelo beicinho. Há de cair como mosca, eu te garanto.

— Um divertimento, hein?

— Não, sou muito capaz de casar. Aquele arzinho ingênuo, aqueles olhos de madona traduzindo uma alma cheia de sentimentos bons... — tudo nela, enfim, agrada-me.

— Mas é uma pobretona, filho. Aquilo é para a gente namorar, encher de beijos e — pernas p’ra que te quero! És muito calouro ainda nisso de amores. Aproveita a tua mocidade, deixa-te de pieguismo, menino. A vida é uma comédia, como lá diz o outro...

Então o Zuza, acendendo um cigarro, disse que estava aborrecido de mulheres que se entregavam facilmente. Em Pernambuco namorara a filha de um barão e, se não fosse esperto, àquelas horas estaria talvez às voltas com o minotauro de que fala Balzac. Era uma rapariga esplêndida, mas tão depravada, tão dissoluta que acabou fugindo com um jóquei do Prado Pernambucano, um negro!

Quanto às mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro, precisava casar, mas, casar com uma menina ingênua e pobre, porque é nas classes pobres que se encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo parecia-lhe uma criatura simples, sem essa tendência fatal das mulheres modernas para o adultério, uma menina que até chorava na aula simplesmente por não ter respondido a uma pergunta do professor! Uma rapariga assim era um caso esporádico, uma verdadeira exceção no meio de uma sociedade roída por quanto vício há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando voltasse ao Ceará, pensaria seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a calhar: pobrezinha, mas inocente...

— É o que tu pensas, retorquiu o outro. Hoje não há que fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nós outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócios de namoros. Sei de uma que foi encontrada pelo professor de história natural a debuxar um grandíssimo falo com todos os seus petrechos...

— O que, homem?

— É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro de Arronches e lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que já tem filhos.

— Oh! Senhor, então ao que me vai parecendo, está muito adiantada a nossa pequena sociedade! Exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pincenez. Pois olha eu supunha isto aqui uma santidade...

— É que há muito tempo não vinhas ao Ceará. Por cá também se dão escândalos como em Pernambuco, e escândalos de pasmar a um sacerdote da moral, como o filho de meu pai.

O escritório da Província estava quase deserto. Apenas o José Pereira e o estudante conversavam amigavelmente, sentados um defronte do outro à mesa dos redatores, fumando, enquanto lá dentro, nos fundos onde ficavam as oficinas, os tipógrafos compunham atarefados a matéria do dia.

Seriam duas horas da tarde. A calor abafava.

Um rapazinho raquítico, em mangas de camisa, com manchas de tinta no rosto e um ar amolentado, veio trazer as provas do expediente do governo.

— Falta matéria? Perguntou José Pereira, encarando-o. "Não sabia, não senhor, ia ver". E saiu voltando imediatamente: que o jornal estava completo.

— Bem, disse o Zuza, levantando-se, vou à casa do Sr. Guedes. Preciso acabar com isso.

— Mas olha, recomendou o redator, não vás fazer asneiras, hein?

— Não, não. A coisa é simples. Addio.

E retirou-se fazendo piruetas com a bengala no ar.

— É um criançola esse Zuza, murmurou José Pereira molhando a pena.

Imediatamente entrou o Castrinho, outro colaborador da Província, também poeta e amigo particular de José Pereira, autor das Flores Agrestes publicadas há dias e que tinham sido muito bem recebidas pela crítica indígena. Vinha trazer a resposta ao crítico do Cearense que o chamara — plagiador de obras alheias.

— Então temos polêmica? Perguntou José Pereira sem levantar a cabeça, revendo as provas.

— Porque não? Hei de provar à evidência que não preciso plagiar a ninguém. Aqui está o primeiro artigo. É de arromba!

O Castrinho sacou do bolso do paletó de alpaca um calhamaço de tiras de papel gordurosas e sacudindo-as, como quem toma o peso a alguma cousa:

— Aqui está: hei de rebater uma a uma, sem dó nem piedade, todas as asserções do meu invejoso contendor.

— Já te falo, disse o outro, continuando o trabalho. Tem paciência um pouquinho. O diabo das provas...

— Sim, continua; não te quero interromper...

Plagiador, ele, que tinha talento para dar e emprestar a toda a caterva de versejadores cearenses? Havia de provar o contrário, porque tanto sabia burilar um soneto como manejar a prosa.

Até estimara a provocação do Cearense, porque desse modo o público ficaria sabendo quem eram os imitadores, os parasitas da poesia nacional. Ali estavam o juízo da imprensa fluminense, ali estava o juízo de toda a imprensa do Brasil, do Amazonas, do Prata, sobre as Flores Agrestes. Um jornal do Sul — O Cometa — comparara-o até a Olavo Bilac e a Raimundo Corrêa.

— Inveja, murmurou José Pereira. O verdadeiro talento é sempre vítima do despeito das mediocridades.

E terminando a revisão:

— Vejamos isto, disse o Castrinho entregando a papelada. Hei-de convencer ao zoilo do Cearense, por a+b que ele é quem é plagiador, o invejoso, o ignorante, a besta, e eu o poeta consciencioso e moderno que não se limita a cantar Elviras e a copiar Lamartine.

José Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da Perseverança e Porvir, "atestado eloqüente de uma luta de heróis" — como dizia o Zuza — e, depois de acender a ponta do cigarro, que estava à beira da mesa, devorou com olhar protetor a série de argumentos mais ou menos esmagadores com que o outro pretendia aniquilar o articulista da folha adversa. Tinha a epígrafe — As Flores Agrestes e a Inveja Furiosa, — e concluía nestes termos: "Voltarei à questão para esmagar com a lógica irrefutável da verdade o ousado e néscio criticista que me acoimou de plagiador. O público verá qual de nós tem razão; eu, que tive o aplauso da quase totalidade da imprensa brasileira, ou o zoilo do Cearense, que pretendeu obscurecer o meu merecimento".

— Magnífico! Exclamou José Pereira, levantando-se. Dá cá um abraço. Homem.

E estreitando o Castrinho contra o peito:

— Tens talento como um bruto, menino. Olha que quem escreveu vale o que escreveu, caramba! Continua, Castrinho, continua, que ainda hás de vir a ser um grande poeta. Desta massa é que se fazem os Byron e os Vítor Hugo... E logo, paternalmente: — Queres jantar comigo?

— Obrigado. Hás de permitir que te agradeça, hein? Adeuzinho. Não esqueças o artigo.

— Absolutamente não. Amanhã, impreterivelmente, ve-lo-ás na segunda página, todo inteirinho. Adeus.

Vendedores de jornais esperavam a Província, à porta da redação, inquietos, turbulentos, a questionar por dá cá aquela palha, e já se ouvia o barulho do prelo lá dentro imprimindo a folha governista. Empregados públicos voltavam das repartições taciturnos, em sobrecasacas sórdidas, mordendo cigarros Lopes Sá, amarelos, linfáticos, o estômago a dar horas. Pouco movimento na rua do Major Facundo; um ou outro transeunte macambúzio, de chapéu de sol, caixeiros que atravessavam a rua ligeiros, em mangas de camisa, e alguns pobres diabos arrastando-se a pedir esmola.

A cidade permanecia na sua costumada quietação provinciana, muito cheia de claridade, bocejando preguiçosamente de braços cruzados, à espera do Progresso. Suava-se por todos os poros e respirava-se a custo, debaixo d’uma atmosfera equatorial, acabrunhadora. Estalava à distância, num ritmo cadenciado e monótono, o canto estridente e metálico d’uma araponga, cujo eco repercutia em todo o âmbito da pequena capital cearense.

Ao dobrar a rua da Assembléia o Zuza parou, à espera que o bonde passasse, e esteve considerando um instante. — De que lhe servia ir onde estava o Guedes e quebrar-lhe as costelas a bengaladas? O rapaz podia repetir a agressão e aí estava o conflito sério, em que necessariamente um dos dois havia de sair ferido. Afinal de contas era provocar um escândalo inútil, vinha a polícia e a vergonha era dele, Zuza, unicamente dele, um rapaz de posição, amigo do presidente... Não valia a pena abrir luta com um pasquineiro. O melhor era, como aconselhara o José Pereira, dar o desprezo ao cão. Se ele, porém, o abocanhasse outra vez, então, decididamente, quebrava-lhe a cara. Apelava para a reincidência do foliculário. Província estúpida! Estava doído por se ver livre de semelhante canalhismo. E àquilo é que se chamava terra da luz!

Seguiu para casa preocupado com essas idéias, com um nojo do Ceará.

O coronel divertia-se tranqüilamente com a passarada do viveiro, metido no inseparável gorro de veludo bordado a ouro e retrós. Era amigo de pássaros e tinha-os magníficos em gaiolas de arame penduradas na sala de jantar, além do viveiro, também em arame, em forma de quiosque chinês, com uma bola de vidro no alto, colocado no quintal, defronte da casinha de banhos.

Uma vidinha estúpida aquela! Pensava o estudante estendendo-se na rede. Morria-se de tédio e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh! O Recife, o Prado aos domingos, os passeios, os belos piqueniques a Caxangá... Lembrou-se da sua última conquista amorosa — a Rosita, uma espanhola com quem estivera seguramente uns seis meses. Um peixão! Morava na Madalena. Vira-a uma vez no teatrinho da Nova Hamburgo, sozinha num camarote, muito bem vestida, com um rico leque de plumas, anéis de brilhante, esplêndida: era argentina.

Que de cerveja e ceiatas e passeios de carros e pagodeiras nos hotéis! Relembrava a primeira noite que passara com Rosita, por sinal tinha tomado muita champanhe, tinha feito um figurão. A rapariga compreendeu que tratava com gente fina e entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou por uma ceia em casa dela, na Madalena, um chalezinho de porta e janela com varanda, forrado a papel sangue de boi e jardinzinho na frente. A sala de visitas era um mimo com sua mobília mignon de assento estufado, piano, quadros do paganismo, bibelots... E a alcova? Um ninho, um perfeito ninho de amores. Zuzinha — era como ela o tratava, toda ternura cobrindo-o de beijos, suspendendo-o nos braços como se levantasse uma criança, sentando-o no colo — ela de pegnoir de fustão com fitinhas azuis, uns olhos matadores úmidos de sensualidade, e ele à frescata, em mangas de camisa, sem colarinho — um deboche!

E uma saudade imensa invadia-o, saudade da Rosita, saudade da república, — uma troça alegre de rapazes endinheirados e limpos, — saudades dos banhos de mar em Olinda...

Depois veio-lhe à mente a normalista, a cearense do Trilho de Ferro. Muito bonitinha, é verdade, mas uma tola que não sabia tratar com rapazes educados. Lá por ser pobre, não; mas parecia-lhe tão atrasadinha, assim como apalermada, indiferente a tudo. Além disso um nome de matuta — Maria do Carmo. Ainda se fosse Maria Luiza, mas Maria do Carmo!...

Começou então a fazer considerações sobre Maria. Achava-a até parecida com a Franzina, uma rapariga de Pernambuco, também morena e d’olhos cor de azeitona, baixinha e sem vergonha, "passada" por todos os estudantes da academia. Mas mesmo muito parecida, agora é que se lembrava: era a Franzina. Um horror! No Ceará não se encontravam mulheres públicas de certa ordem. Tudo era uma récua de meretrizes imundas, carregadas de sífilis até os olhos. Os rapazes viviam se queixando de moléstias secretas.

Levantou-se em ceroulas, para acender um cigarro, espreguiçando-se.

O quarto era pequeno, mas arranjado com certo decoro e bom gosto. O Zuza herdara essa qualidade característica dos Souza Nunes — o amor à ordem. Tudo dele era arrumado e limpo. Adorava a boêmia, mas a boêmia que não cospe no assoalho e que toma banho ao menos uma vez por dia. Nisto de assei, como em muitas outras coisas, era correto e o pai o louvava por essa qualidade especial de se portar com a máxima inteireza, no asseio do corpo, como no das ações. Toda a mobília do pequeno compartimento consistia numa estante envidraçada, cadeiras, um sofá e uma mesinha redonda, colocada no centro e coberta com um pano azul, de lã. Comunicava com outro quarto menor onde estava a cama de ferro e uma rede. Ma cabine à coucher, dizia o Zuza mostrando aos amigos esse interior confortável de boêmio rico. A claridade entrava pela varanda e ia morrerem penumbra lá dentro no segundo quarto. No papel claro das paredes destacavam-se litografias encaxilhadas de poetas célebres e o retrato de Gambetta, na postura habitual em que o grande orador falava ao povo. Em política era o seu ídolo, dizia o estudante, e, no auge do entusiasmo, colocava-o acima de Mirabeau. Em cima da mesa números avulsos da Revista Jurídica confundindo-se com jornais ilustrados, e um porta-retratos com as fotografias do coronel e da esposa, olhando para os lados, em sentidos opostos. Tal o "gabinete" do Zuza, o seu remanso de estudante cuidadoso.

Tinha aberto ao acaso seu romance querido — A Casa de Pensão. Um livro importante, gabava; um livro que revelava o grau de adiantamento da literatura brasileira, não deixando a desejar os melhores dos escritores naturalistas portugueses. Este exagero do Zuza deve se levar a conta do ódio injusto que ele votava a tudo quanto cheirasse a lusitanismo.

O estudante, porém, nunca passara a vista sequer num romance de Eça ou numa crítica de Ramalho. — "Não queria, não podia tragar coisas que lhe provocassem vômitos". Preferia um churrasco à baiana ao "tal" Sr. Camilo Castelo Branco, um sujeito inimigo do Brasil, que não pedia a ocasião de nos ridicularizar. De Portugal, Camões exclusivamente, isso mesmo porque o grande épico era uma "glória universal". Certas palavras tinham um encanto particular a seus ouvidos. Gostava de frases cheias e retumbantes. Os Lusíadas? eram uma "epopéia imortal", dizia ele. Pronunciava a palavra epopéia com a boca cheia, acentuando muito o é. Uma obra de arte reconhecidamente boa era, a seu ver, uma epopéia, fosse qual fosse o gênero d’ela. O Cristo e a adúltera de Bernadelli? Uma epopéia nacional!

Começou a ler A Casa e Pensão em voz alta, em tom de recitativo, pausadamente, repetindo frases inteiras, aplaudindo o romancista com entusiasmo, exclamando de vez em vez: — "Bonito, seu Zuza" como se fosse ele próprio o autor do livro. Depois, sacudindo o romance sobre uma cadeira, levantou-se espreguiçando-se com estalinhos nas articulações, escancarando a boca num bocejo largo. Que horas seriam? O despertador de níquel marcava quatro e meia. Ô diabo! Tinha-se descuidado. Estava convidado para jantar com o presidente às cinco pontualmente. Começou a vestir-se assobiando trechos de música seródia. De repente: — "E a normalista que não lhe tinha respondido a carta!" Muito atrasadinhas as cearenses, pensava. Que mais queria ela? E defronte do espelho, pondo a gravata: — "Era um rapaz chic,, dava muita honra à Sra. D. Maria do Carmo escrevendo-lhe uma carta amorosa, pois não? Era o que faltava, a Sra. D. Maria do Carmo não lhe dar atenção! Mas havia de cair por força. Era uma questão de tempo".

Cinco horas. O Zuca enfiou a sobrecasaca às pressas, perfumou-se, endireitou a gravata e — até logo — foi-se como um raio.

7

À proporção que se aproximava o dia do casamento de Lídia com o guarda-livros, as visitas d’este à casa da viúva Campelo iam-se tornando de mais a mais freqüentes. A Campelinho não cabia em si de contentamento; pudera! Ia enfim ver-se livre do perigo de ficar para tia. De resto o Loureiro era um ótimo rapaz, excelente empregado, natural de bom gênio, tolerante em extremo e senhor de seu nariz. Era como se fosse de casa, como se já fizesse parte da família, surdo como uma pedra aos boatos mais ou menos mentirosos que corriam sobre a vida privada de D. Amanda. Nunca se dera ao trabalho de averiguar se efetivamente o procedimento de sua futura sogra merecia censuras da gente honesta, mesmo porque o seu emprego não lhe deixava tempo para isso.

Não, senhor, dizia ele, se por ventura alguém procurar abrir-lhe os olhos; a viúva era um modelo de mãe de família, coitada, vivendo modestamente do minguado montepio de seu finado marido, afora um negociozinho de rendas que tinha no Pará, e que lhe deixava para mais de cinqüenta por cento. O mais eram palanfrórios, e ele, no caráter de futuro genro da viúva, não podia consentir que ninguém a difamasse impunemente.

João da Mata lhe dissera uma vez, ao ouvido, batendo-lhe amigavelmente no ombro, que não se iludisse, que a Campelo recebia fora de horas o Batista da feira; que ele, João da Mata, vira muitas vezes, com os próprios olhos, o negociante entrar cosido à parede, alta noite, como um gato.

Histórias! O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam prejudicar muito os créditos da pobre senhora. Absolutamente não acreditava em tais boatos. Conhecia bem o gênio e a vida de D. Amanda para desprezar semelhantes falsidades. Em suma, era da escola de S. Tomé: ver para crer.

Até então só tinha motivos para louvar o procedimento da sua futura sogra. E concluía: "— Por amor de Deus não falassem mais em tais coisas... Tinha olhos p’ra ver".

Todas as noites, invariavelmente, lá ia ele dar seu dedo de palestra com a noiva, e, depois do víspora em casa do amanuense, ficavam os dois horas e horas na calçada, num aconchego muito íntimo, ela apoiada sobre seus ombros, fazendo-se meiga e apaixonada, ele babando-se de satisfação ao contato palpitante das carnes rijas e abundantes da sua futura mulher. D. Amanda entrava propositadamente para os deixar à vontade naquele arrebatamento de noivos sadios e vigorosos.

Um noite o guarda-livros quis ir mais longe nas vivas demonstrações de seu amor pela Campelinho. Com os lábios pregados à boca da Lídia, quase abraçados, procurou com uma das mãos apalpar alguma coisa que a rapariga ocultava religiosamente no templo inviolável de sua castidade.

— Não, isso não! Fez ela esquivando-se, toda cautelosa, com ar de surpresa.

Deixasse d’aquilo, que era muito feio entre noivos. Não havia necessidade; tinham muito tempo depois. Tivesse paciência, sim?

E muito terna, derreando-se de novo sobre o ombro do guarda-livros, beijou-o na face áspera de espinhas, sem repugnância, e começou a cofiar-lhe carinhosamente os bigodes, devagarinho, arregaçando-os, assanhando-os para tornar a alisá-los, prolongando assim a delícia de Loureiro que nesses momentos era como um escravo das mãozinhas brancas e delicadas de Lídia.

— Mas, que tem? Perguntou ele com a voz trêmula, um fluído estranho no olhar terno.

— Não, meu bem, isso não, que é feio, tornou a Campelinho. Tem paciência.

Não fazia mal, continuou o Loureiro. Não eram noivos? Não eram quase casados? Que diabo! Consentisse ao menos uma vez. Era um instantinho. Ora! Uma coisa tão simples, tão natural!... Ninguém via, deixasse, que tolice!

E enquanto falava, muito baixo, com hesitações trêmulas na voz embargada pela sensualidade, estendia a mão por baixo, o olhar fito nos olhos vivos e penetrantes a rapariga.

Nem um ruído da rua do Trilho, nem uma voz, nem o vôo pesado de um morcego: tudo silêncio, e uns restos de luar a extinguir-se esbatendo defronte nos telhados. Apenas, ao longe, vago e indistinto quase, o ruído monótono do mar no silêncio da noite calma.

— Oh! não... suplicou a Campelinho sentindo o contato da mão grossa do guarda-livros. Deixa...

Houve um fru-fru de vestidos machucados e o baque de uma cadeira.

Momentos depois o Loureiro despedia-se triunfante, pisando devagar, caminho do HOTEL DRAGOT.

Desde então começou a retirar-se muito tarde. Havia noites em que só saía depois de uma hora da madrugada. Ultimamente almoçava e jantava na casa da viúva. Era mais econômico do que pagar hotel, dizia D. Amanda: bastava que ele contribuísse com trinta mil réis mensais e tudo se arranjaria ali mesmo em família; de modo que o Loureiro pouco a pouco foi-se fazendo, por assim dizer, dono da casa, chefe da família. Por fim todas as despesas corriam por sua conta e risco. Aluguel de casa, comedoria, roupa lavada e engomada, vestidos para a Lídia, tudo era ele que pagava de boa vontade, sem tugir, nem mugir, porque queria e tinha prazer nisso. Muito econômico, amigo de seu dinheirinho, mas em se tratando das Campelo, não tinha mãos a medir, era de uma prodigalidade sem limites. Coitadas! Lamenta consigo, eram umas pobres; cada um sabe de si e Deus de todos; tinha quase o dever de ampará-las, tanto mais quando estava para ser marido da pequena. E abriu o seu grande coração e a sua bolsa àquelas duas criaturas, que se lhe afiguravam duas santas através do prisma azul de seu amor pela rapariga. Subscritor da sociedade de São Vicente de Paulo, um pouco devoto, às vezes tinha rasgos de verdadeiro filantropo. D. Amanda e a filha eram aos seus olhos "duas vítimas da maledicência de uma sociedade hipócrita e torpe até a raiz dos cabelos". Agora jantava e almoçava em casa da viúva, que já lhe sabia os gostos, as manias. Ela mesma ia preparar a comida, os ovos quentes e a lingüiça assada do almoço, o feijão e o lombo assado para o jantar. D. Amanda estava radiante com o genro. Tratava-o a velas de libra, fazia-lhe todas as vontades, escovava-lhe a roupa, e eram cuidados de mãe carinhosa ou de criança que tem um pássaro na mão e receia lhe fuja.

Aos domingos o guarda-livros ia logo cedo para o Trilho, às vezes com a cara por lavar, metido em calças pardas, abotoado até ao pescoço. Era quando tinha algum descanso das lidas quotidianas do armazém, da escrituração do Caixa. Às seis horas da manhã já ele estava de caminho para o Trilho, muito à fresca, cigarro ao canto da boca, prelibando as delícias de um dia inteiro em companhia da noiva, sem ter que dar satisfação a Carvalho & Cia., com a consciência tranqüila de quem cumpriu religiosamente o seu dever.

Nem sequer tomava café no hotel. Pulava da rede às pressas, sem perder tempo, enfiava as botinas, as calças, o paletó surrado, e abalava por ali fora, escadas abaixo. Às vezes, ainda encontrava a porta da viúva fechada. Batia devagar com a ponta dos dedos: "— Sou eu, o Loureiro!" Imediatamente D. Amanda vinha abrir, embrulhada nos lençóis, cabelos soltos, em mangas de camisa. E a faina começava. Escancaravam-se as portas para dar entrada livre ao arzinho fresco da manhã, que se derramava por toda a casa, como um fluido que se evaporasse de repente de um depósito aberto. O Loureiro tirava o paletó, abria a toalha no ombro, e, enquanto se punha a ferver a água para o café, refestelava-se num confortável banho frio puxado de véspera na grande tina que havia no "banheiro". Era tempo de cajus. O guarda-livros tinha a mania dos depurativos. Antes do banho emborcava um copo de mocororó "para retemperar o sangue!, dizia ele. Depois o cafezinho quente, coado pelas mãos de D. Amanda, e, finalmente, o belo dia passado currente calamo; tranqüilamente, num longo idílio, naquele canto obscuro de Fortaleza, com a "sua santa". O hotel servia-lhe apenas para dormir, porque o Loureiro era filho do Rio Grande do Norte, onde perdera pai e mãe, não tinha no Ceará sequer um parente em cuja casa pudesse passar as noites. Amigos capazes de merecerem toda a sua confiança também não os tinha. Pacato, concentrado e pouco expansivo, dificilmente comunicava-se a quem não o procurasse em primeiro lugar. Sua natureza egoísta aprazia-se com a vida sedentária. — Um esquisitão de força, uma espécie de urso! Diziam os seus camaradas do comércio.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


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