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E os dias passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no azul, iguais sempre, eternamente monótonos.

Novembro estava a chegar. Novembro, o mês dos cajus e das ventanias desabridas, com as manhãs friorentas e claras, em que, às vezes, nuvens sombrias acumulam-se no horizonte e vão subindo até desmancharem-se completamente num chuvisco ligeiro que apenas borrifa de leve a superfície seca do solo, pondo cintilações diamantinas nas folhas do arvoredo; novembro, o mês dos estudantes, o mês dos exames, que passa levando consigo as ilusões cor-de-rosa dos que deixam os bancos preparatórios e dos que começam a vida pública.

O Zuca não tinha pressa em se formar. De resto era uma questão de tempo o seu bacharelato. Resolvera passar mais alguns meses no Ceará, com a família, e então ir-se-ia completar o curso. Já agora o Ceará não lhe era inteiramente uma terra má. Habituava-se pouco a pouco a essa vida de província pacata em que se trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia. Maria do Carmo tinha lhe escrito uma cartinha lacônica e expressiva confessando o seu amor. Entregou-a ela mesma, no Passeio Público, numa quinta feira, à noite, uma belíssima noite de luar. A avenida Caio Prado tinha o aspecto fantástico d’um terraço oriental onde passeassem princesas e odaliscas sob um céu de prata polido, com suas filas de combustores azuis, encarnados e verdes, com as suas esfinges... Senhoras de braço dado, em toilettes garridas, iam e vinham no macadame, arrastando os pés, ao compasso da música, conversando alto, entrechocando-se, numa promiscuidade interessante de cores, que tinham reflexos vivos ao luar; d’um lado e d’outro da avenida estendiam-se duas alas de cadeiras ocupadas por gente de ambos os sexos, na maior parte curiosos que assistiam tranqüilamente ao vaivém contínuo dos passantes.

O plenilúnio muito alto dir-se-ia uma grande medalha de prata reluzente com o anverso para a terra, suspensa por um fio invisível lá em cima na cúpula azul do céu. Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado de cintilações minúsculas, largo, imenso, desdobrando-se por ali a fora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto, a mastreação dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para um e outro lado, como oscilações de um pêndulo invertido.

— Uma noite admirável, hein? Maria! dizia Lídia de braço com a amiga, levada pela onda dos dilettandi. A normalista, porém, não deu atenção à Campelinho, muito distraída, caminhando maquinalmente, a pensar no estudante. Decididamente entregava-lhe a carta, fosse como fosse. Eram oito horas e o Zuca ainda não havia chegado. Estava aflita, inquieta, impaciente. E se ele não fosse ao Passeio esta noite? Ela rasgaria a carta e nunca mais havia de o procurar. O seu coração batia com força. Ia e vinha, cansada de esperar, com ímpetos de voltar para casa.

— Tem paciência, menina, disse a outra. O rapaz não tarda. Está no clube, talvez.

Qual clube! Era necessário acabar com aquilo. Começava a desconfiar do Zuca. Certo ele queria passar o tempo folgadamente, por isso fingira aquela comédia de amor. Não era possível, não acreditava na sinceridade do Zuca. Se ele fosse outro procurá-la-ia sempre, em toda a parte, nos passeios, no teatro, nos bailes. E ela é que estava fazendo uma figura ridícula a procurá-lo, como se ele fosse o único homem do Ceará com quem ela pudesse ser feliz!

E lá veio o maldito nervoso, uma vontade de fechar os olhos a tudo e viver para si, egoisticamente, como o bicho da seda no seu casulo. Incomodava-lhe o zunzum de vozes e as pisadas da multidão, a própria música começou a fazer-lhe mal à cabeça. Que horror! Nem sequer podia passear!

Nisto ouviu uma voz que lhe pareceu a do estudante.

— Boa noite, minhas senhoras!

Era realmente ele, que vinha chegando ao lado do José Pereira, muito correto, de chapéu alto, calça de casimira clara, croisé aberto, grandes colarinhos lustroso de ponta virada e a infalível flor na botoeira.

Maria voltou-se aturdida e um suspiro largo e bom escapou-lhe do peito.

Até que enfim! Ele ali estava inteiro, completo, absoluto!

Agora pensava em como entregar a carta sem que ninguém visse, sem escândalo.

A Lídia sugeriu-lhe uma idéia — iriam à outra avenida, mais sombria e menos freqüentada; ele naturalmente havia de ir também e então passava-lhe a carta num aperto de mão franco e amigável.

— Sim, vamos...

E dirigiram-se para a avenida Carapini, ensombrada pelos castanheiros, que formavam uma como abóbada compacta de ramagens através das quais o luar coava-se aqui e ali, pelas clareiras.

Puseram-se por ali a esperar, em pé defronte dos gnomos de louça, à beira dos reservatórios d’água onde cruzavam gansos e marrequinhas vadias que grasnavam alegremente inundadas de luar ou, caminhando devagar, iam contando os minutos, enquanto a música, no coreto, executava trechos alegres de operetas em voga. No botequim, rodeado de toscas mesinhas de madeira, abriam-se garrafas de cerveja com estrondo e havia um movimento desusado de gente. As normalistas afastaram-se para mais longe.

— Eles não vêm, disse Maria desanimada, enquanto a outra procurava com o olhar o estudante, que se confundia coma a multidão.

— Tem paciência, tolinha. Por que não hão de vir?

Com efeito, d’aí a pouco assomou no extremo oposto da avenida a figura corpulenta de José Pereira, alta, larga, colossal, ao lado do Zuca, que lhe ficava pelo ombro, apesar de alto também, com o seu corpo fino em contraste frisante com o todo asselvajado do amigo. Vinham passo a passo, discretamente. Pararam no botequim, numa roda de rapazes que discutiam calorosamente sobre política.

De braço dado, ombro a ombro, as duas raparigas tinham procurado o lugar mais sombrio da avenida onde não podiam ser facilmente reconhecidas pelos passeantes da Caio Prado.

— Esperemo-los aqui, disse Lídia, sentando-se com um vago suspiro.

E continuava a chegar gente e a encher o Passeio por todas as avenidas do primeiro plano, cruzando-se em todos os sentidos, acotovelando-se, confundindo-se. Na Mororó, mais larga que as outras, havia uma promiscuidade franca de raparigas de todas as classes: criadinhas morenas e rechonchudas, com os seus vestidos brancos de ver a Deus, de avental, conduzindo crianças; filhas de famílias pobres em trajes domingueiros, muito alegres na sua encantadora obscuridade; mulheres de vida livre sacudindo os quadris descarnados, com ademanes característicos, perseguidas por uma troça de sujeitos pulhas que se punham a lhes dizer gracinhas insulsas. Toda uma geração nascente, ávida de emoções, cansada d’uma vida sedentária e monótona, ia espairecer no Passeio Público aos domingos e quintas feiras, gratuitamente, sem ter que pagar dez tostões por uma entrada, como no teatro e no circo.

Ali não havia distinção de classes, nem camarotes, nem cadeiras de primeira ordem: todos tinham ingresso para saracotear nas avenidas ao ar puro das noites de luar.

Apenas quem não tivesse dois vinténs esta proibido de sentar-se, porque, nesses dias, as cadeiras eram alugadas, havia assinaturas baratas. Lia-se mesmo na Província o seguinte anúncio: "No estabelecimento Confúcio e no Club vendem-se cartões de assinaturas de cadeiras no Passeio Público, com abatimento nos preços". Mas, ora, toda a gente possuía vinténs para alugar uma cadeira, e, demais, ia-se ao Passeio para andar, para se mostrar aos outros como numa vitrine, não valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver desfilar o que? O mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as mesmas caras, as mesmas toilettes. Não valia a pena de certo.

Quando a música parava, um realejo fanhoso, ao som do qual rodavam cavalinhos de pau, em um dos ângulos do jardim, gemia, num tom dolente e irritante, o Trovador atordoando os ouvidos delicados do Zuca que achava aquilo simplesmente insuportável e medonho como um assassinato em plena rua.

— "Como é que se consentia semelhante importunação em uma capital que tinha foros de civilizada? Oh! em Pernambuco, o italiano que se lembrasse de tocar realejo à porta d’uma república era imediatamente punido a batatas e as cascas de laranja. Estava muito atrasadinho o Ceará!"

Gostava pouco d’ir ao Passeio, o que fazia raríssimas vezes a convite do José Pereira, que comparava aquilo a um paraíso.

— O Passeio Público? dizia ele; o Passeio Público é um dos mais belos do Brasil e a coisa mais bem feita que o Ceará possui. Que vista, que magnífico panorama se aprecia da avenida Caio Prado, à tarde! Nem o Passeio Público do Rio de Janeiro!

E justificava o anti-bairrismo do estudante:

— É que tu tens passado a melhor parte da tua vida na Corte e em Pernambuco, menino, dizia ele. Se vivesse algum tempo nesta terra, havias de gostar extraordinariamente. Mas o que te posso afirmar é que no Brasil não há uma cidade tão bem alinhada como esta, uma iluminação mais rica do que a nossa e um Passeio Público assim como este.

— "Não duvidava, não duvidava, mas o Ceará ainda estava muito atrasadinho, lá isso estava".

Afinal chegou o momento que Maria do Carmo aguardava com a impaciência febril de um desesperado. O redator da Província e o Zuca tinham deixado o grupo de políticos e aproximavam-se a passos lentos. Ao passarem pelas normalistas a Campelinho levantou-se e, muito desembaraçada, com esse tic indizível das raparigas habituadas a convivência dos homens e à vida elegante, dirigiu-se aos dois amigos, saudando-os rasgadamente com um belo sorriso aristocrata:

— Como passou, Sr. José Pereira?... Sr. Zuca...

— Oh! minha senhora... fizeram os dois ao mesmo tempo.

E a Lídia, depois de perguntar a José Pereira, com quem tinha alguma familiaridade, se vira por ali D. Amélia, e com uma ponta de cinismo, dirigiu-se ao Zuca:

— Que tal o Passeio, Sr. Zuca?

— Esplêndido, minha senhora! Está de encantar!

— Isto é um inimigo do Ceará, D. Lídia, atalhou José Pereira rindo, com a sua voz muito grossa, os dentes muito brancos e pequeninos. Isto é um vândalo.

— Vândalo, não. Sou apenas um admirador, um amante do progresso. A meu ver, repito, o Ceará tem muito ainda, mas mesmo muito (e deu umas castanholas com o dedo) que andar para ser uma capital de primeira ordem.

— Eu já sabia que o Sr. Zuca não gostava da terra de Iracema, disse a normalista.

Maria tinha se deixado ficar à distância, sentada num banco de madeira encostado a uma árvore, na meia sombra que havia de um lado da avenida, quieta, imóvel, acaçapada, como uma cousa a toa... Sentia-se cada vez mais tola, mais matuta e insociável.

A presença do acadêmico punha-lhe calafrios na espinha, e vinha-lhe logo um desejo de isolar-se e não dizer palavra. Não sabia o que aquilo era; o certo é que a presença do Zuca hipnotizava-a, fazia-lhe perder a cabeça, como se estivesse diante de um monstro, de uma criatura misteriosa, cujo poder sobre ela fosse enorme.

Zangava-se consigo mesma nesses momentos. Já estava em idade de perder de todo o acanhamento e que diabo! Atirar-se à vida, à sociedade, sem medo, sem receios infundados, sem pieguismos. Bolas! De si para si, tornava a jurar nunca mais ter medo de homem algum, mas no outro dia era a mesma da véspera, fraca, impotente para dominar-se.

— Pois estamos distraindo o espírito, tornou a Lídia. A avenida Caio Prado está muito cheia; vimos apreciar o movimento d’aqui, da avenida dos charutos.

O Zé Povinho denominava avenida dos charutos, a avenida Carapini por ser mais freqüentada por gente de cor, e Lídia achava muita graça naquilo, não podia acertar com o verdadeiro nome da sombria aleia, ponto dileto de cozinheiras e raparigas baratas da rua da Misericórdia.

— Ah! Fez o Zuca. Então V. Excia. não veio só?

— Não, não. Vim com a minha amiga inseparável.

E voltou-se para Maria, que fingia olhar para o coreto da música.

— Quem D. Maria do Carmo? Perguntou José Pereira, voltando-se também.

— Sim, a Maria...

— Oh! exclamou o redator dirigindo-se para a normalista. Está triste hoje, D. Maria? Uma moça bonita não se deixa ficar assim na sombra. Como vai, como tem passado, boazinha? Sempre acanhada!... Venha, faz favor? Quero-lhe apresentar a um moço muito chic e que lhe aprecia muito.

Quem , o Sr. Zuca? Ela já conhecia. Estava descansando.

— Ô Zuca!

O acadêmico e Lídia aproximaram-se.

E José Pereira num tom de cortesia:

— Apresento-te aqui a Sra. D. Maria do Carmo, normalista, e uma das moças mais distintas da nossa sociedade, uma flor!

Riram todos àquele disparate premeditado, pondo uma nota alegre nesse obscuro recanto do Passeios.

— Oh! Já se conheciam? Não sabia, por Deus! Então já conheces a moça mais bonita do Trilho de Ferro, hein? Uma coisa que não sabes: faz versos também...

Maria cumprimentou o estudante com um modo muito discreto, conservando-se sentada, aflita.

A música deu começo a um tango repinicado, saltitante e carnavalesco, espécie de Chorado Baiano, com rufos de tambor, em que sobressaía o clarinete, cujas notas, muito prolongadas e queixosas, morriam languidamente.

De quando em quando os instrumentos faziam uma pausa e rompia um coro de vozes grossas — Quem comeu o boi?... que a molecagem, lá fora, repetia numa desafinação irritante de vozes finas.

— Vamos tomar alguma coisa, insistiu José Pereira oferecendo o braço à Lídia cortesmente. Ô Zuca, você dá o braço a D. Maria do Carmo.

E, dois a dois, dirigiram-se para o botequim, José Pereira na frente com a Campelinho.

A ocasião era oportuna.

Maria a princípio desanimou completamente, mas, num ímpeto decisivo e franco, fazendo um esforço supremo sobre a si mesma, nervosa, mais tímida que nunca, sacou a carta, passou-a ao estudante, com a mão trêmula, sem proferir palavra, e imediatamente veio-lhe um arrependimento profundo de se ter comprometido daquele modo, como se naquela carta fosse toda a sua honra, todo seu pudor de rapariga honesta. Estava perdida! Pensou, e já lhe parecia que toda a gente — o Passeio Público em peso — seguia-lhe as pegadas observando-lhe todos os movimentos.

— Ah! Fez o Zuca satisfeito. Pensei que não respondesse.

E sentindo-se dono daquela prenda, com um frêmito de pálpebras através dos óculos de ouro, aconchegou a si o braço roliço da normalista meio descoberto.

Maria conservou-se calada, sentindo cada vez mais forte o poder misterioso do estudante sobre seu coração extremamente sensível e bom. Deixou-se ir automaticamente, como uma sonâmbula.

Sentaram-se. José Pereira quis saber o que desejavam tomar. Havia sorvete, cidra, cerveja, vinho do Porto, chocolate...

— Cerveja, acudiu a Lídia.

Todos assentaram, depois de alguns minutos de indecisão, em tomar cerveja, e o redator da Província, sempre alegre e cortês, enfiando a cabeça para dentro do botequim, pediu três garrafas de Carls Berg, gelo e quatro copos.

O serviço do botequim era feito por um menino que entrava e saía sem descanso, uma azáfama dos diabos, suado, com os cabelos empastados na testa, sem paletó, uma toalha nauseabunda e úmida no ombro, acudindo, ele só, a todos os chamados.

Rapazes impacientes, de chapéu caído para a nuca, tresandando ixora, muito arrebitados, batiam com as bengalas sobre as mesinhas.

— Uma garrafa de cerveja, menino!

— Ó pequeno, aqui. Olha dois cafés.

O pobre caixerinho não tinha tréguas, com a cara enfaruscada, resmungando.

De vez em quando, esfregava a toalha nas mesas com força, salpicando restos de comida nos janotas.

— Ó burro, estás cego?

O menino zangava-se e corria à outra mesa.

Vinha de dentro do quiosque um cheiro ativo de café requentado. Saíam bandejinhas com chocolates e pão-de-ló.

— Muito mal servido isto, objetou Zuca com ser ar afetado de fidalgo, limpando os bigodes. Tenho notado mesmo que aqui, no Ceará, não se usa guardanapo...

— É objeto de luxo, disse José Pereira, atirando também o seu dichote.

E pouco a pouco a conversação foi se animando, pouco a pouco foi-se estabelecendo uma intimidade entre todos, aos passo que os copos esvaziavam.

Pediram mais uma garrafa de cerveja.

A própria Maria do Carmo tinha o rosto em fogo. Foi perdendo o acanhamento e ria também com os outros quando o redator dizia pilhéria.

A Lídia essa, lambia os beiços a cada copo que virava de dois tragos. Era a sua bebida predileta — cerveja. Bebera pela primeira vez ali mesmo no Passeio, por sinal o Alferes Coutinho, do batalhão, é que tinha pago. Estava em meio do terceiro copo, — Aquilo é que era uma bebida agradável e higiênica", dizia ela. Não gostava de licores e bebidas adocicadas. A champanhe mesmo enjoava-lhe.

— E que tal acha o peru? Perguntou maliciosamente o José Pereira.

Isso era outra coisa: o peru era uma excelente bebida; bastava ter sido inventada pelo presidente da província, um moço de educação muito fina, viajado. Diziam até que tinha ido à Rússia...

Então falou-se do presidente, que José Pereira não perdia ocasião de elogiar exageradamente.

Um homem superior, gabava ele, um gentleman, um fidalgo de raça, uma dessas criaturas que a gente ficava querendo bem por toda a vida. Pois não! Excelente amigo, dedicado até, jogador de florete, sabendo montar a cavalo "divinamente" e atirando ao alvo com uma perfeição ultra! E que educação, que finíssima educação social! O homem falava francês como um parisiense, entendia inglês e tinha um modo excepcional de se portar em qualquer ocasião solene. Com tudo isto, acrescentava pigarreando, era muito bom democrata, sim senhores. Passeava sem ordenança, a pé; ia ao mercado pela manhã "ver aquilo" como qualquer plebeu , e jogava o bilhar na Maison Moderne... Que queriam mais? D’um homem assim é que o Ceará precisava. Ele estava ali na pessoa do Castro.

Tratava o presidente familiarmente, como a um amigo de muita intimidade.

Por sua vez o Zuca elevava o presidente aos cornos da lua. A sua opinião resumida era a seguinte: "Todos os cearenses juntos, trepados uns sobre os outros, não chegavam aos pés do fidalgo paulista".

— Eu o que mais admiro nele é o pescoço, a brancura escultural do pescoço, disse Maria.

O presidente foi analisado escrupulosamente da cabeça aos pés, como uma estátua grega, ao sabor da cerveja Carls Berg.

Já não havia quase ninguém no Passeio, quieto agora, sem o ruído tumultuoso dos passantes, sem música, todo iluminado pela claridade branda e melancólica do luar. Apenas se ouvia o grasnar áspero dos gansos nos reservatórios, o gritar estridente das marrequinha e a toada dos soldados no quartel, rezando.

José Pereira tinha pedido mais uma garrafa de cerveja e instava para que Maria do Carmo tomasse "um bocadinho só". A normalista, porém, cobria o copo com a mão, recusando. Que não: estava muito cheia, sentia uma pontinha de dor de cabeça. Botasse p’ra Lídia...

Ora, fizesse favor, aceitasse, por vida de seus magníficos olhinhos de princesa encantada, suplicou o redator da Província fixando os olhos em Maria que esperava o assentimento do Zuza.:

— Por que não toma, D. Maria? perguntou este num tom quase imperativo. O José Pereira pede-lhe com tão bons modos...

Maria aceitou com um gesto de repugnância.

— À sua saúde, fez José Pereira, tocando o copo no da normalista.

Houve um tilintar de cristais chocando-se ao de leve, e todos beberam ruidosamente.

— Agora vamo-nos chegando que se faz tarde, propôs Lídia levantando-se

Mal se sustinha em pé. José Pereira ofereceu-lhe o braço.

Uma languidez extrema tinha-se apoderado de Maria, cujas pálpebras pesavam como chumbo. Foi preciso amparar-se ao estudante para não cair redondamente.

— Uma tonteira! Queixou-se ela fechando os olhos.

Não era nada, disse o outro, passando-lhe o braço pela cintura; e enquanto o redator seguia pela avenida com a Lídia, deixavam-se ficar naquela posição, em pé ambos e quase abraçados.

— Olhe, D. Maria...

A rapariga tentou abrir os olhos, e nesse momento, naquele silencioso recanto do Passeio estalou um beijo. Depois seguiram também, e, juntos todos quatro foram tomar café no restaurante Tristão.

8

Maria do Carmo chegou à casa ofegante, esfalfada, com a cabeça a arder, muito corada e alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos efeitos da cerveja, rindo por da cá aquela palha. Atirou-se com todo o peso do corpo nos braços de João da Mata, fazendo-lhe festa, muito amorosa, como uma cadelinha de estima depois d’uma ausência. No seu olhar aveludado e submisso havia uma súplica irresistível.

— Cheguei um bocadinho tarde, não é assim, padrinho? Perguntou cosendo-se ao amanuense, a cabeça derreada para trás.

João olhou-a, olhou-a, hesitante, com um ar de extrema bonomia no rosto ainda há pouco carrancudo.

Tinha acabado de ralhar pela demora da afilhada e agora achava-se sem ânimo de dizer uma só palavra áspera à rapariga, cujo olhar fascinava-o com um abismo. Ali estava ela a seus pés, submissa e mais bela do que nunca, acariciando-lhe a barba, toda sua, como uma escrava.

— Sim senhora, chegou um bocadinho tarde. Isto não são horas de uma moça estar passeando...

Afetava um tom repreensivo e ao mesmo tempo paternal.

Quase dez horas! Não era bonito aquilo, tivesse mais juizinho. Enfim, por aquela vez, o dito pelo não dito, mas, por amor de Deus, não fizesse outra, senão, senão...

— Mas, padrinho...

— Não tem padrinho, não tem nada. Pode ir ao Passeio, mas, por favor, não me volte a estas horas.

E afagava os cabelos de Maria, passava-lhe a mão nas faces, atoleimado, imbecil, como um velho impotente, o olhar aceso através dos óculos escuros, a calva reluzente como uma grande bola de bilhar.

— Tu bebeste cerveja, aposto, tornou tomando entre as mãos a cabeça da rapariga, e cheirando-lhe a boca. Ora se tomou...

— Tomei, sim, padrinho, tomei um copo assim. E indicou o tamanho do copo. Mas não estou tonta, não, padriozinho... Olhe, foi só um copo.

— E quem t’o pagou?

— Quem pagou? ... Ora, quem pagou...

— Sim , quero saber quem te pagou a cerveja. Tu não levaste dinheiro...

— Quem pagou foi o Sr. José Pereira...

— Eu logo vi! Aposto em como o tal Zuca também entrou na festa.

Maria fez-se desentendida, e agarrando-se ao pescoço do amanuense, com um pulo plantou-lhe um beijo na testa.

João da Mata desequilibrou-se.

— Ora, ora, ora, esta menina!...

Não sabia o que fizesse. Ralhar? Não. Maria estava encantadora e pagava-lhe com beijos as recriminações. Calar? Também não. A rapariga era capaz de reincidir na falta. O verdadeiro era não falar mais no Zuca. E João da Mata rematou a conversa:

— Vá, minha filha, vá dormir, que você não está boa...

Maria beijou, como de costume, a mão descarnada do padrinho, e, d’um salto, recolheu-se ao seu querido quarto do meio, caindo pesadamente na rede, vestida como estava, sem ao menos lembrar-se de soltar os cabelos, tendo apenas tirado os sapatinhos e desabotoado o corpete.

Arre! Estava muito fatigada, precisava descansar.

E adormeceu imediatamente com um sorriso adorável na pequenina boca entreaberta.

Teve sonhos impossíveis e horrorosos nessa noite. Cerca de onze horas acordou sobressaltada com um pesadelo. Sonhou, coisa extravagante! Que ia sozinha por um caminho deserto e interminável onde havia urze e flores em profusão. Estava perdida, sem saber o rumo que devia tomar , caminhando sem olhar p’ra trás.

De repente — Arre corno! Ouviu a voz aguardentada do Romão, o mesmo que fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e miserável do negro. Era um Romão colossal, grosso e musculoso como um Hércules, nu da cintura p"ra cima, as espáduas largas reluzentes de suor, calças arregaçadas até os joelhos, preto como carvão, as pernas curvas formando um grande O, os braços levantados segurando na cabeça chata um barril enorme transbordando imundícies! —Arre corno! Grania o negro no silêncio da noite clara, cambaleando muito bêbado, perseguido por uma cáfila de cães que ladravam desesperadamente. Fazia um luar esplêndido...

Assim que deu com os olhos nela, o negro atirou o chão o barril de porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romão, cambaleando sempre, muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido, beijando-a, besuntando-a.

Que horror! Ela mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos, quis fugir sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deitou-a no chão com força e ... E Maria do Carmo acordou quase sem sentidos, sentando-se na rede, com um grande peso no coração, aflita, sufocada, sem poder falar, porque tinha a língua presa...

— Virgem Maria! suspirou logo que pôde voltar a si. Que sonho feio!...

Suava em bicas, muito pálida, como se acabasse de sair de um forno. Só então reparou muito admirada que ainda estava com a mesma roupa com que fora ao Passeio Público. Riscou um fósforo com a mão trêmula, acendeu a velinha de carnaúba e começou a despir-se depressa.

Lá fora na rua, passava uma serenata. Uma voz de homem cantava uma modinha conhecida, acompanhada de violão e flauta:

Não cho..res, querida Elvi...ra...

Maria sentia-se doente, com um sabor desagradável na boca e uma dor forte nas têmporas. Vinha-lhe uma vontade de vomitar, de deitar fora a cerveja que bebera: sentia um mal estar geral em todo o corpo, como se estivesse para cair gravemente doente.

Que seria, Deus do céu? Aproximou a vela do espelho, um velho traste com o aço muito estragado, e achou-se abatida, os olhos fundos, uma crosta esbranquiçada na língua. Nunca mais havia de tomar a tal cerveja, uma bebida selvagem, sem gosto, repugnante como um vomitório. Só tomara naquela noite por causa do Zuza, porque ouvira dizer que "era moda nas grandes cidades", na Corte e no Recife, as senhoras tomarem cerveja. Mas credo! Noutra não caía. Se soubesse teria pedido cidra.

Quis chamar a Mariana para lhe fazer um chazinho de laranja, mas era muito tarde, podiam desconfiar e, depois o padrinho agora dormia na sala de jantar...

Não, não, era melhor não incomodar a ninguém! aquilo havia de passar, se Deus permitisse.

Tinha até esquecido de rezar...

Ajoelhou-se, mesmo em camisa, diante da oleografia que representava o Cristo abrindo o coração à humanidade, balbuciou uma oração, persignou-se e, mais aliviada, mais fresca, adormeceu novamente, pensando no estudante.

O amanuense, no mesmo dia da briga com a mulher, resolvera de então em diante dormir numa rede na sala d jantar. Uma figa! Não estava mais para suportar o calor infernal da alcova, e, além disto, viviam ultimamente, ele e D. Terezinha, arengando consecutivamente como duas crianças invejosas, pela coisa mais insignificante. Ele, muito jubiloso, achava que tudo em casa ia muito ruim, que D. Terezinha não se importava com as coisas, que não se fazia mais economia — "Um gasto enorme de dinheiro! um desperdício sem nome, um esbanjar sem trégua, e afinal de contas, não passavam da carne cozida e do lombo assado com arroz. Isso assim ia mal, muito mal. Depois ninguém fosse chorar por dinheiro..."

Quem, ela, chorar? Que esperança! Estava muito enganado, seu "pap’angu" de boceta. Tinha muito para onde ir, não faltavam casa de gente séria no Ceará. Socasse os eu dinheiro onde quisesse...

Toda a vizinhança, ávida de escândalos, ouvia com risinhos de pérfida satisfação aqueles torniquetes às vezes imorais até, do amanuense com a mulher. Era um divertimento.

— Deus o fez e o diabo os ajuntou, dizia a mulher d’um barbeiro que morava ali perto, paredes meias.

Quando João da Mata entrava na pinga então a coisa tomava proporções assustadoras. Ameaçava expulsar a mulher de casa a pontapés, berrava como um possesso, batia as portas, quebrava louça ao jantar, rogava pragas e a própria empregada não escapava à sua cólera.

Mariana era uma rapariga muito pacata e em pouco acostumou-se às impertinências ríspidas de "seu Joãozinho".

— Para que havia de dar o pobre homem, dizia ela às vezes, penalizada, cruzando os dedos sobre o ventre. Credo! A gente vê coisas! Hum, hum!...

E muito risonha, muito tola, com o seu ar idiota de animal dócil, lá se ia para a cozinha cuidar das panelas e da louça, porque era ao mesmo tempo cozinheira e copeira.

Quase todos os dias a mesma lengalenga, o mesmo duelo de palavras de porta de feira, a mesma pancadaria de descomposturas. Não era raro sair da boca desdentada do amanuense uma obscenidade!

— Jesus! exclamava Maria fugindo para o seu quarto com as mãos nos ouvidos.

Ao ouvir a voz de João da Mata berrando como um danado, a vizinhança chegava às janelas ávida de escândalo. Meninos em fralda de camisa, chupando o dedo, paravam defronte da porta do amanuense, muito espantados, olhando cheios de curiosidade pelas frinchas da rótula.

E a algazarra crescia lá dentro, como se papagueassem muitas pessoas ao mesmo tempo.

As duas criaturas faziam as delícias da rua do Trilho, que se regozijava com aqueles espetáculos gratuitos de um cômico irresistível.

— "Aquilo ainda acabava mas era num escândalo badejo", resmungava a mulher do barbeiro, uma magricela de cara de quem está sempre com dor de barriga. O Loureiro repetia indignado, dando-se ares de homem sério e reformador de costumes:

— "Uma gente sem vergonha. Uma canalha! Tomara já se casar para ver-se longe de semelhante peste. Até que era feio a Lídia ter amizade com aquela gente".

E aconselhava à rapariga que fosse, pouco a pouco, deixando de ir à casa de João da Mata, porque não lhe ficava bem, a ela, "rapariga de família", em véspera de casar, ter relações com uma corja d’aquela.

Já não se jogava o víspora na casa do amanuense. As velhas coleções dormiam esquecidas no saquinho de baeta verde em cima do piano.

D. Terezinha transformava-se a olhos vistos. Pouco lhe importavam os móveis cobertos de poeira e de fuligem das locomotivas; protestara nunca mais abrir o bico para dar ordens naquela casa. Esta cansada de agüentar desaforos "do corno" do Sr. João da Mata.

E tudo por que? Por causa de uma peste que se lhe metera casa adentro e agora andava mostrando os dentes e mais alguma cousa ao padrinho, com partes de afilhada. Não, ela é que não servia de alcovitiira a ninguém, meu bem. Estava muito enganadinho . Se quisesse fazer mal à sonsa da Maria fosse fazer onde bem entendesse, mas ela, Teté, não servia de travesseiro, não, mas não mesmo... Estimava muito que lhe deixassem dormir só, na sua cama. Não perdia nada.

Por seu lado o amanuense encarava a mulher com um desprezo solene. Vinha-lhe agora um arrependimento profundo por ter feito a asneira de amigar-se com D. Terezinha. Tanta rapariguinha fresca e bonita vivia à procura de um homem, tanta retirante "moça" e pobre, tanta gente boa no mundo, fora amigar-se logo com quem? com quem, Sr. João da Mata? Com uma sujeita feiosa que só tinha carne nos quadris, um monstro de gordura, com pernas finas e ainda por cima estéril! Que grandíssima cabeçada! Entretanto, podia estar muito bem casado com uma mulher de certa ordem, rica mesmo, bem educada e bonitona.

Depois que se mudara para sala de jantar apoderou-se dele um aborrecimento inexplicável por D. Terezinha.. Passava horas e horas estendido na rede, de papo para o ar, em ceroula e camisa de meia, acendendo cigarros, a pensar na vida, como um grande capitalista que sonha no dinheiro acumulado usurariamente; e Maria do Carmo aparecia-lhe na imaginação como um tesouro preciosíssimo, que ele receava fosse cobiçado um belo dia pelo rapazio galante da cidade... Estava ficando velho, era preciso aproveitar o resto da vida. É verdade que em 77, na seca, tinha desfrutado muita "bichinha" famosa. Nesse tempo ele era comissário de socorros... Mas nenhuma daquelas retirantes chegava aos pés da afilhada. Chegava o que! Nem havia termo de comparação. Maria, além de ser uma rapariga asseada, e apetitosa como uma ata madura, tinha, sobre as outras, a vantagem de ser inteligente e educada.

Estas qualidades da normalista tinham um encanto extraordinário aos olhos do amanuense. Nunca em sua vida cheia de aventuras amorosas encontrara uma rapariga nas condições de Maria do Carmo, filha da família, branca, singularmente encantadora e que estivesse ao alcance de seu coração, ah! nunca.

Maria punha-o doido com seus belos olhinhos cor de azeitona. A sua imaginação criava planos fantásticos, inexequíveis, por meio dos quais ele pudesse iludir a afilhada, e, zás, tirar-lhe o lírio branco da virgindade. Não queria precipitar-se com o risco de um escândalo comprometedor, isso não. Preferia insinuar-se pouco a pouco, devagar, no ânimo da pequena, sem a sobressaltar, fazendo-lhe todas as vontades, de modo que, na ocasião oportuna, no momento preciso, ela se entregasse prontamente, sem resistência.

Com efeito Maria, agora, para não desagradar ao padrinho, obedecia-lhe cegamente, com a resignação indolente e fria duma escrava. Que havia de fazer, ela uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir? Consentia, pudera não! sem a menor resistência, que o amanuense afagasse-lhe o bico dos seios virgens e lhe passasse a mão pelas coxas tenras e polpudas...

— Está fazendo cócegas, padrinho, murmurava rindo, com riso sem expressão, que lhe vinha do fundo d’alma de donzela.

— Sossega, tolinha, ralhava João.

E ela não tinha remédio senão ficar quieta, imóvel, com o olhar úmido no teto, abandonada às carícias sensuais d’aquele homem repugnante que a perseguia com um animal no cio, mas que afinal de contas era seu padrinho...

Muitas vezes, ah! quase sempre, vinham-lhe ímpetos de reagir com toda a força do seu pudor revoltado, mas ao mesmo tempo lembrava-se que era só no mundo, porque já não tinha pai nem mãe, e podia ser muito desgraçada depois... Sim, era preciso paciência para suportar tudo até que o Zuza se decidisse a ampará-la sob a sua proteção de rapaz rico. Vivia agora, sabe Deus como, entre a indiferença cruel de D. Terezinha e a vontade soberana do amanuense, por assim dizer sozinha naquela casa onde tudo tinha o aspecto sombrio e desolado da pobreza desonesta. Ah! mas aquilo havia de acabar fosse como fosse...

A própria Lídia já não a procurava como dantes toda orgulhosa com o seu noivo. A felicidade da amiga aumentava-lhe ainda mais o desespero. Decididamente era muito infeliz. Aí vinham-lhe outra vez as lágrimas e os soluços concentrados. Recolhia-se com os olhos cheios d’água ao seu quarto com uma tristeza infinita no coração e só achava conforto nas confidências amorosas do Zuza, que ela guardava como uma relíquia no fundo de uma caixinha perfumada de sândalo. Esquecia-se a lê-las devagar, repetindo frases inteiras, admirando a bela caligrafia em que elas eram escritas, beijando-as sobre a assinatura do estudante, toda entregue ao seu amor.

Havia uma semana que se correspondiam por cartas onde a vida de ambos era descrita como num diário, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Porque o futuro bacharel desconfiara do modo frios com que o amanuense o recebia, e, sem dizer nada a ninguém, resolvera nunca mais pôr os pés naquela casa que ele "honrara" durante quase um mês com a sua presença. Pílulas!

Todos os dias encontrava o sujeito com uma cara de mata-mouros, a pequena tinha ordem de não lhe aparecer, e mesmo era uma estopada ir ao Trilho a pé, sujeitando-se à crítica idiota dos mequetrefes da vida alheia. Estava decidido — não iria mais ao Trilho de Ferro. E cumpriu a sua palavra com a dignidade de um fidalgo.

Encontravam-se diariamente na Escola, que o Zuza freqüentava agora com a pontualidade irrepreensível d’um inglês. E, como não podiam conversar à vontade sem escandalizar os créditos do estabelecimento já um tanto abalados, trocavam cartinhas no intervalo das aulas.

Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata que lamentava por sua vez tamanho "desastre". Um rapaz fino, com um futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma simples normalista sem eira nem beira! E em toda a parte, desde o Café Java até ao Palácio da Presidência, comentava-se, discutia-se ruidosamente o assombroso acontecimento. Uns asseguravam que o Zuza estava desfrutando a rapariga para depois — fuisser! pôr-se ao fresco e nunca mais pisar o solo cearense. Outros, porém, eram de parecer que o acadêmico tinha boas intenções e até fazia bem levantar da miséria uma criatura como a Maria, que estava se perdendo em companhia do amanuense. Havia outro grupo que acreditava no casamento do Zuza com a normalista porque, na sua opinião, a menina já "estava pronta", isto é, o estudante já lhe tinha "plantado no bucho um Zuzinha". E, assim, multiplicavam-se as opiniões, enquanto o Zuza, fazendo ouvidos de mercador, não se dava ao trabalho de desfazer boatos — "Que se fomentassem todos. Não tinha que dar satisfações a ninguém por seus atos".

Um belo domingo a Matraca lembrou-se outra vez de curtir o couro ao Zuza em redondilhas escandalosas que enchiam quase toda uma página. Os vendedores do pasquim atravessavam as ruas em disparada esbaforidos, apregoando alto e bom som o Namoro do Trilho de Ferro.

Em todas as esquinas surgiam meninos maltrapilhos sobraçando o jornaleco, arquejantes sob a luz crua do sol que incendiava a cidade nesse luminoso meio-dia de novembro.

O casarão do governo, acaçapado e informe, com o seu aspecto branco e tradicional de velho edifício português do tempo do Sr. D. João VI, com a sua fila de janelas, alinhas à maneira de hospital, espiando para a praça do General Tibúrcio, parecia dormir um sono bom de sesta, batido pelo sol, na mudez solene de um monumento arqueológico. Tinha dado meio-dia na Sé; ainda vibrava no espaço iluminado e azul a última nota das cornetas.

Àquela hora o estudante acabara de almoçar com o presidente, e, de pernas cruzadas, reclinado numa cadeira de balanço, dedicava-se a fumar tranqüilo o seu havana mais o José Pereira, na larga sala de recepção do palácio.

De repente:

A Matraca a 40 réis! O namoro do Trilho de Ferro! O estudante e a normalista! Grande escândalo!

Um menino passava gritando a todo pulmão, numa voz fina de adolescente, as notícias da folha domingueira.

Zuza — com o rosto afogueado pelo Bordeaux que tomara ao almoço — estremeceu na cadeira.

— Hein?

O vendedor de jornais repetia a lengalenga lá fora, na praça. Então o estudante, fulo de raiva, sacudindo fora o resto do charuto, levantou-se e foi direto à janela.

— Psiu! Psiu! Ó menino da Matraca!

— Eu?

— Sim, você mesmo!

Enquanto se esfrega um olho os dois encontraram-se em baixo na porta do palácio.

— Que está você a gritar, seu patife? perguntou Zuza segurando o vendedor pelas orelhas.

— Nada, seu dotô; é o namoro do Trilho...

— Você ainda repete, seu grandíssimo corno!

E, depois de encher o pequeno de petelecos, o futuro bacharel tomou-lhe todos os exemplares da Matraca, rasgando-os imediatamente.

O outro abriu-lhe a goela a chorar encostando-se à parede, com a cabeça entre os braços.

— E puxe! continuou o Zuza implacável, com o seu olhar de míope. Vá, vá, vá e diga ao dono desta imundície que eu ainda lhe quebro a cara a bengaladas, hein? Vá, vá, vá...

O pequeno não teve outro jeito senão ir-se arrastando pela parede, muito triste, resmungando, protestando nunca mais vender a Matraca, enquanto o Zuza explicava o caso ao José Pereira e ao presidente, que o receberam com uma explosão de risos.

O caso não era par rir, dizia ele formalizado limpando os óculos com a ponta do lenço de seda. O caso não era para rir, que diabo! Ainda havia de quebrar a cara do redator da Matraca. Aquilo excedia as raias do decoro e do respeito que se deve ter à sociedade. Que essa! Não era nenhum filho da mãe que estivesse a servir de judas a Deus e ao mundo. Era assim que se resolviam questões de dignidade pessoal — à bengala!

— Mas vem cá, ó Zuza, disse amigavelmente o fidalgo paulista; tu perdes o tempo e o latim com semelhante gente...

— Eu já o aconselhei, interrompeu José Pereira. O desprezo é a arma dos fortes.

— Qual desprezo, hein? O desprezo é a arma dos covardes. Eu cá resolvo as coisas positivamente a bengaladas.

— Quantas já destes ao redator da Matraca? — perguntou José Pereira para confundir o Zuza.

— Não dei nenhuma ainda, mas pretendo, antes de me ir embora, quebrar-lhe os queixos, sabe você?

O presidente para não provocar mais a bílis do Zuza perguntou, a propósito de jornais que se ocupavam da vida alheia, se tinham lido o Pedro II, e a conversa descambou para o terreno árido da política local.

— Que diz o papelucho? perguntou fidalgo de dentro dos seus grandes colarinhos lustrosos.

— A mesma coisa de todos os dias, respondeu José Pereira com um gesto de desprezo. Que você é um péssimo presidente, que você gosta de tomar champagne, e, finalmente, que você "vai encaminhando as coisas públicas para um abismo".

— Ora, suporte-se uma coisa destas!, saltou o Zuza. Eis aí: é ou não para se dar o cavaco?

— Mas, Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissão de dez funcionários amigos da oposição. Queres ver uma coisa?... Que dia é hoje?

— Domingo...

— Pois bem, vou mandar lavrar a demissão de alguns empregados públicos, que se dizem miúdos, com a data de hoje. Eis aí está como se resolvem questões desta ordem. Insultam-me, não é assim? injuriam-me, acham que sou mau, que não tenho juízo, que sou indiferente à sorte do Ceará... Pois bem, hoje mesmo muita gente vai pagar pelos diretores do tal partido. Nada mais simples, não achas?

Ante a resolução pronta e decisiva do presidente o Zuza ficou perplexo. Decididamente era um grande homem aquele!

— Mas olha que vais reduzir à miséria muitas famílias...

O presidente teve um sorriso de suprema indiferença àquelas palavras do estudante e dirigiu-se à secretaria com o passo firme de quem caminha para uma ação nobre com o seu belo porte de diplomata.

Zuza pretextou uma forte enxaqueca e abalou a pensar no vendedor da Matraca. Tinha feito mal em esbofetear o rapazinho, porque afinal de contas o pequeno estava inocente, nada tinha que ver com os desaforos publicados. Era um simples vendedor, coitado.

Enfiou pela rua da Assembléia, macambúzio, com um ar indolente, chapéu derreado para trás, riscando o chão coma bengala, muito distraído.

"— Que diabo! A gente sempre faz asneiras..."

E, pecador arrependido, entrou em casa esbaforido, soltando, logo à entrada, um bocejo de velho preguiçoso.

Entretanto a demora do Zuza na capital cearense começava a inquietar o coronel Souza Nunes. Era época de exames e o estudante nem sequer falava em tirar passagem para o Recife onde já se devia achar a fim de concluir o curso.

— Se lhe entrasse na cabeça a idéia de casamento com a tal senhora normalista, então, adeus, pensava o coronel; ia tudo águas abaixo. Seria talvez preciso improvisar um passeio à Europa, do contrário o rapaz era capaz de fazer uma estralada dos diabos.

Ia falar ao Zuza como pai, ia repreendê-lo severamente, dizer-lhe com a franqueza rude de um superior para um subalterno que aquilo não podia continuar, que era tempo de seguir para o Recife, que se preparasse.

Mas o filho tinha umas maneiras capciosas de convencê-lo, fazendo-se enérgico, revoltando-se contra a maledicência pública, provando-lhe com argumentos fortes que tudo que se dizia na rua era mentira, que ele, Zuza, até desejava ir-se logo para Pernambuco, o que decididamente faria no primeiro vapor.

— O certo é que vapores passam, e tonam a passar e tu vais ficando, objetou-lhe um dia o coronel que abstinha-se de falar na normalista.

— ... Mas, ora, há tempo bastante para tudo. Os exames começam tarde este ano.

— Qual tarde, meu filho! tu estás perdendo um tempo precioso quando já devias estar lá.

Havia ente os dois, pai e filho, uma familiaridade moderna, como se fossem apenas irmãos.

A esposa do coronel é que não se envolvia em questões.

Adorava o filho, é verdade, tratava-o com todo carinho, tinha orgulho nele, mas, sempre muito boa, respeitava as resoluções do Zuza e evitava contrariá-lo na mais pequena coisa. Demais, D. Sofia estimava até que o filho se demorasse o mais possível em sua companhia.

A formatura do Zuza era para ela uma questão secundária que havia de se resolver mais cedo ou mais tarde; de si para si achava que o estudante tinha pouco amor aos estudos, mas não revelava este seu pensamento a ninguém. Vivia constantemente incomodada, com fortes dores no útero provenientes de um parto infeliz em que fora preciso arrancar a criança a fórceps.

Era uma senhora de quarenta anos com todos os característicos de uma boa esposa; inimiga de passeios, importando-se pouco ou nada com a vida elegante, arrastando a sua enfermidade incurável pelo interior sossegado da casa. O Zuza tinha-lhe uma afeição supersticiosa. D. Sofia era a única mulher sincera e boa no mundo a seus olhos de filho agradecido. Um pedido, um desejo de sua mãe era satisfeito imediatamente, sem considerações, custasse o que custasse.

Ela, por sua vez, a pobre senhora, retribuía-lhe o afeto com a mesma dedicação, com o mesmo desprendimento, não contrariando o mais leve pensamento do rapaz.

"— É o que me obriga vir ao Ceará, dizia ele, é minha velha, do contrário jamais eu tornaria a esta província insuportável."

Mas entravam e saiam vapores e ele deixava-se ficar com o seu tédio, preso irresistivelmente aos olhos cor de azeitona da normalista como a uma forte cadeia de ferro. "— Tinha tempo, tinha tempo..." repetia, decidido a passar o Natal em, Fortaleza. Que diabo! deixassem-no ao menos provar o tradicional aluá. Os exames? ninguém se incomodasse, faria-os em março; era até melhor, porque assim podia estudar mais e "fazer figura".

E os dia passavam e cada vez mais crescia no seu espírito o desejo veemente, a ambição romântica de possuir completamente aquela rapariga que se tinha apoderado de todo o seu coração. Queria para esposa uma mulher nas condições de Maria do Carmo, órfã, de origem obscura e pobre. Decididamente casava-se desta vez embora isso custasse algum desgosto ao pai. Todo homem deve ter a liberdade de escolher a mulher que melhor lhe quadrar.

— Mas olha que a rapariga é normalista... lembrava José Pereira maliciosamente.

Que importava isso? Fazia muito bom juízo da sociedade cearense para não acreditar que todas as normalistas do Ceará fossem indignas de um rapaz de certa ordem. O que queria é que a pequena soubesse corresponder à sua confiança.

9

Foi num sábado, à noite, que se realizou cerimoniosamente, com toda a pompa de uma festa de província, o casamento da Lídia com o guarda-livros, na igreja de N.S, do Patrocínio.

Às sete horas parou à porta da viúva Campelo um carro e saltou o Loureiro todo de preto, gravata branca, o cabelo lustroso, repartido ao meio em trunfas, empunhando o seu famoso clak. Estava glorioso dentro da sua casaca de pano fino mandada fazer especialmente para o ato.

Que festa na rua do Trilho!

No quarteirão compreendido entre a rua das Flores e a do Senador Alencar, notava-se um movimento desusado de gente que se debruçava às janelas e parava na calçada e nas esquinas para esperar a saída dos noivos. Uma curiosidade flagrante estampava-se na fisionomia dos moradores que assistiam basbaques à chegada dos carros, comunicando a sua ruidosa alegria àquele pedaço de rua habitualmente silenciosa e sossegada.

Havia folhas tapetando o chão defronte da casa da viúva onde reinava agora uma estranha aglomeração de pessoas de ambos os sexos, compactas, abafadas, espremidas entre as quatro paredes da pequena sala de visitas.

A noiva estava acabando de colocar a grinalda quando entrou o Loureiro muito teso com um riso amável e desconfiado que lhe arrebitava o bigode espesso. Dois sujeitos, também encasacados, de luvas, foram recebe-los à porta. —"Chegou o homem", anunciou uma voz, e a estas palavras cresceu o zunzum propagando-se por ali fora entre os curiosos que se acotovelavam à porta da rua.

E logo toda gente a repetiu transmitindo-se a grande notícia —"chegou o noivo!" — e todos os olhares caíram de chofre sobre o guarda-livros transfigurado em herói de comédia.

D. Amanda, muito azafamada, tomou-o pelo braço e conduziu-o à sala de jantar para lhe oferecer um calizinho de vinho do Porto.

Loureiro queixou-se do calor sacando fora as luvas, rubro, com a testa reluzente de óleo, metido num colarinho em folha, todo ele recendendo opopánax. Nunca ninguém o vira tão bem disposto, tão lépido, com um ar ao mesmo tempo condescendente e soberano de capitalista sem débito. —"A noiva estava pronta?" — perguntou. E, sem esperar resposta, começou a contar um incidente que lhe sucedera no hotel no momento em que se vestia. Nada, uma infâmia que não lhe atingia sola do sapato. Uma carta anônima contra a reputação de Lídia, coisas do Ceará, coisas dessa terra...

Incomodara-se a princípio, o sangue subira-lhe à cabeça ao ler semelhantes torpezas, mas acalmara-se logo, porque não valia a pena a gente incomodar-se por uma carta anônima escrita em péssima letra e, o que era mais, acrescentou convicto o Loureiro, "sem assinatura".

A viúva não se inquietou, atarefada, suando, muito apertada na sua toilette de seda escarlate, os grandes seios ameaçando romper o corpete e uma rosa no cabelo. — Calúnias, nada mais, observou servindo o vinho. O guarda-livros emborcou o cálice à saúde da noiva, gabando a boa qualidade do Porto.

A pequena sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais asseado e alegre, sem manchas de gordura nas paredes amarelecidas, como d’antes, com vasos de flores no aparador, iluminada à vela de espermacete. Sobre a mesa do centro coberta com um pano novo de riscadinho encarnado, pousavam duas lanternas em forma de sino, jarros, pratos com bolos e garrafas intactas dispostas em simetria. O chão de tijolo ainda estava meio úmido da baldeação que se fizera na véspera. De resto os mesmos móveis do costume: um lavatório de ferro com espelho defronte do corredor, a mesa de jantar, o aparador de nogueira e o guarda-louça, uma velha peça que fora do tempo do marido de D. Amanda.

A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a Lídia, era no Benfica, uma casinha também de porta e janela, mas muito fresca e alegre, nova, ainda cheirando à tinta. Resolvera não fazer festa. Um "copito" de vinho aos amigos, um taco de bolo e o deixassem em paz com a sua "querida". Tinha feito muitas despesas com o casamento. Da igreja iria diretamente para a "chácara", onde ficava à disposição dos amigos. Isso de pândega em noite de núpcias não era próprio, achava uma formidável maçada. Demais não era nenhum milionário para não contar o dinheiro que gastava.

Uma miniatura a casinha do Benfica, um sonho do poeta lírico, assobradada, com a sua fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio até o meio-dia toda a luz do nascente. Logo à entrada havia uma escadinha de três degraus, d’onde se via, lá dentro, nitidamente, como por um cristal muito límpido, a sala de jantar e as bananeiras do quintalejo, de um verde tenro... Sala e visitas, alcova, comunicando com um quarto, casa de jantar, varanda, dispensa, quarto para criado, cozinha e quintal, tudo asseado e confortável, com uns tons aristocráticos matizando a compostura graciosa dos móveis, papel claro nas paredes, e lustres na sala de visitas.

Concluídas as obras da casa, o trabalho de renovação, Loureiro dera-se pressa em mobiliá-la a seu jeito, conforme as suas posses e os seus hábitos de empregado zeloso e metódico. Não pedira conselhos a ninguém; escolhera ele mesmo os móveis e objetos decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saído da fábrica naquele instante. Mandara vir dos Estados Unidos, por intermédio da casa Confúcio, um piano americano e uma máquina de costura. E uma vez tudo pronto, tudo no seu lugar, passou uma revista geral na casa, desde a sala de visitas até ao fundo do quintal, admirando com a alma cheia de satisfação a espécie de paraíso que ele próprio criara para si.

"— Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo que nem um brinco! Agora, sim, podia casar."

Lídia pasmou diante daquele novo mundo que se lhe oferecia à vista. Nunca pensara que o guarda-livros soubesse preparar uma casa com tanta graça. Pelo primeira vez na sua vida o Loureiro revelara-se um homem moderno e civilizado. Estava encantada! Já agora não invejava a sorte de Maria do Carmo: o Loureiro podia competir com o Zuza em bom gosto! Quem diria? Supunha o guarda-livros mais tolo, mais ignorante e sensaborão. Agora estava convencida de que o seu homem era capaz de fazer figura em qualquer sociedade. Percorreu todos os aposentos, revistando os móveis, admirando a qualidade fina dos objetos, com exclamações de íntima alegria. Sentou-se ao piano e ensaiou uma escala achando-o excelente.

 

— Esplêndido, hein, mamãe? Melhor que o das Cabraes!

Mirou-se ao espelho, uma peça magnífica, de cristal, que o guarda-livros comprara num leilão particular por preço exorbitante. Subia de ponto a satisfação da rapariga. Esteve quase se atirando ao pescoço do noivo e beijando-o agradecida; conteve-se porém. A viúva, essa acompanhava a filha, embasbacada, dando graças a Deus por ter encontrado semelhante genro. —"Olha isto, menina, olha aquilo!" dizia, muito gorda chamando a atenção da Lídia.

Da sala de visitas passaram à alcova. O guarda-livros guiava-as, na frente, explicando os melhores detalhes, a procedência dos objetos, o seu valor. — "Oh, a cama! saltou a Lídia, sentando-se no belo leito de ferro azul com esmaltes d’ouro, armado à inglesa em forma de dossel.

Achava muito elegante as camas que se estavam usando. Experimentou o enxergão de arame calcando-o com o corpo. Magnífico! A viúva também se sentou um instantinho, e continuaram a visita.

Era quase noite quando se retiraram.

Agora, uma semana depois, num sábado, toda agente falava no casamento da Campelinho como d’um acontecimento extraordinário. A Campelçinho, hein? Quem diria!... Uma felizarda! E todos comentavam o fato com ruído, recapitulando a vida inteira da viúva e da filha, lembrando episódios, cochichando malícias, prognosticando o futuro da rapariga, admirando a boa fé do Loureiro. Coitado, ele talvez ignorasse mesmo certos pormenores da vida da Lídia...

Daí quem sabia? talvez fossem muito felizes. Conheciam-se moças mal comportadas que, depois, casando-se tinham-se tornado verdadeiras mães de famílias.

O Guedes, da MATRACA, esse, logo às seis horas começou a beber no Zé do Gatto mais o Perneta, vomitando todo o seu despeito contra a Lídia que ele cobria de impropérios aguardentados.

Debalde o Perneta procurava acalmá-lo, o Guedes estava fora de si, com os olhos ensangüentados, esbravejando como uma fera.

— Deixa-te disso, ó Guedes, aconselhava o Perneta. Olha que te podem ouvir, homem!

— Que ouçam, que ouçam, cambada de infames!

E batendo no peito orgulhoso:

— Esse aqui beijou muito aquela tipa, sabes? Não preciso dela para coisíssima alguma, estás ouvindo? Aquilo é uma sem vergonha muito grande, aquela fêmea!

— Cala a boca, menino...

— Cala a boca, porque? Pensa você que tenho medo de caretas? Hei de dizer o que eu muito bem quiser, fique você sabendo!

— Quem te diz o contrário, homem de Deus? O que não é bonito é estares por aí a dizer asneiras.

De vez em quando aproximava-se o Zé Gato e suplicava que não falassem tão alto, que na rua se estava ouvindo. Mas o Guedes não atendia a coisa alguma, com o pensamento na Lídia, transbordando cólera, possesso.

Escureceu e ele ainda lá estava no fundo da bodega esvaziando cálices de aguardente, a falar desesperadamente.

Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva Campelo, no Trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, d’aí a pouco surgiu na calçada a Campelinho caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço com a firma Carvalho & Cia.

E àquela aparição levantou-se um rumor em todo o quarteirão. "Já vem, já vem!" era a voz geral.

Logo após vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do Carmo e um rapaz empregado no comércio, D. Terezinha, o Castrinho, e outras pessoas de mais ou menos intimidade, duas a duas.

O cortejo desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se debruçava na janela para ver melhor a noiva. —"Como aquilo ia orgulhoso!", disse Justina Proença, uma paraense equívoca, vizinha de João da Mata. —"Tão besta é um quanto o outro", murmurou a mulher do barbeiro, num muxoxo.

Moleques com tabuleiros de doces na cabeça acompanhavam o préstito.

De repente houve um fecha-fecha na esquina onde iam dobrar os noivos.

Que é? Que foi? Recomeçou o zunzum mais forte, como um zumbido de abelhas num cortiço e os boatos circulavam vertiginosamente. Toda a gente queria saber o que era, o que tinha acontecido. A verdade é que ao aproximar-se o "casamento" da venda do Zé Gato, saltou de dentro o Guedes, bêbedo como uma cabra, espumando, sem chapéu e pôs-se no meio da rua a vociferar obscenidades contra a Campelinho e mais o guarda-livros.

Um escândalo. Soaram apitos; compareceram guardas de polícia; o Zé Gato saiu à rua para acalmar o borracho; foi alterada a ordem do préstito; a Lídia ficou branca debaixo do véu e ia tendo uma síncope; o Loureiro quis avançar contra o desordeiro, mas foi detido por João da Mata...

Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o "casamento" seguiu em paz, direto à igreja do Patrocínio.

O Guedes forcejara por evadir-se dos braços do Zé Gato e d’outro sujeito, que procuravam conduzi-lo à venda.

— Sou eu que te pedes, ó Guedes, vamos. Deixa de tolices, rapaz; estás dando escândalo, homem!

— Não vou, porque não quero, está ouvindo? Não vou, porque não quero. Eu hoje faço o diabo!

E agachava-se, e caía p’ra trás e tombava para os lados, sem gravata, os olhos esbugalhados, os cabelos em desordem, como um doido. Foi uma luta para acalmá-lo.

Por fim o Zé Gato mandou vir uma xícara de café sem açúcar, deu-lhe a cheirar limão, e em pouco, o redator da Matraca dormia beatificamente, debruçado sobre a mesa de ferro onde serviam-se as bebidas.

— Coitado! lamentou o vendeiro. Um talento famoso! É um segundo tomo de Barbosa de Freitas...

Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando baixinho, com um belo ar de familiaridade. Nas fileiras do préstito havia um rumor de franca liberdade. Falava-se um pouco alto, ouviam-se risadinhas gostosas, tinha-se perdido a cerimônia grave de momentos antes. A volta não se parecia com a ida. A alegria dos noivos comunicava-se instintivamente aos circunstantes como se na verdade estes compartilhassem da íntima felicidade daqueles.

Outra vez a casinhola da viúva encheu-se que num um ovo. No meio dos convidados havia estranhos que invadiam a sala sem cerimônia, imiscuindo-se no tumulto de gente como se fossem amigos velhos, de paletó saco e gravatas de cores espaventosas.

Ninguém os conhecia, mas ninguém ousava despedi-los, deixando-os ficar, por uma condescendência razoável. Curiosos de ambos os sexos debruçavam-se da parte de fora das janelas para dentro, espremidos uns contra os outros.

Os noivos tinham se sentado no sofá, defronte à janela, aconchegados, prelibando as delícias do matrimônio na casinha do Benfica.

Loureiro limpava devagar com o lenço recendendo opopánax o suor que lhe corria em gotas da testa, encarando com supremo orgulho a curiosidade pulha dos circunstantes.

Pousava os pés sobre o tapete deixando ver as meias de seda cor de carne com pintas de ouro.

Lídia estava divina com sua suntuosa toilette de noiva comprimindo-lhe os quadris rijos e carnudos, muito séria, o rosto afogueado.

O guarda-livros contemplava-a de instante a instante com um profundo olhar apaixonado de dono que acaricia um objeto querido, sentindo-se mais que nunca irresistivelmente atraído pela formosura sensual da Campelinho.

D. Amanda, sempre muito solícita, veio convidá-los para a ceia: que estava pronto o chá, e logo toda gente enfiou pelo corredor atrás dos noivos, sequiosa de cerveja e vinho do Porto.

Um rubor de ocasião solene tomou as faces do Castrinho, disposto já a brindar os noivos num grande rasgo de eloqüência demostênica.

A saleta de jantar resplandecia à luz dos dois castiçais de vidro com mangas em forma de sino, colocados nas extremidades da mesa. A um canto, sobre uma mesinha de pinho, uma bateria de garrafas de cerveja desafiava a ganância dos convidados. Houve um assalto à mesa. Todos acercaram-se dela com a avidez de gastrônomos, e, antes que os noivos tomassem assento à cabeceira, já havia alguém sentado no extremo oposto. O Castrinho não pode reprimir um — oh! de indignação, que felizmente passou despercebido. —"Sentem-se, sentem-se", ordenava a viúva, inquieta como uma barata à volta da mesa, indicando as cadeiras. Todos se sentaram com ruído, acotovelando-se. Ao lado dos noivos os padrinhos, Carvalho & Cia. e a esposa, tinham o ar modesto de quem se vê cercado de honras imerecidas. O Castrinho que não faltava à festa alguma dessa ordem, sentou-se ao centro com uma comoção visível no olhar agitado.

Os curiosos da rua tinham invadido o corredor e assistiam em pé, ao redor da mesa, àquela cena banal de doze pessoas que comiam bolo à guisa de pirão de farinha; ao todo eram quatorze, mas o Loureiro e a Lídia, por um escrúpulo mal entendido, apenas provaram o delicioso manjar e cruzaram o talher.

O Castrinho não se fez demorar muito. Quando menos se esperava, ei-lo de pé, empunhando o cálice.

— Silêncio, silêncio! advertiu uma voz.

O poeta das Flores Agrestes pigarreou solenemente abrangendo com um olhar vitorioso toda a saleta, e enfiando a mão direita no bolso da calça. com um grande ar de tribuno acostumado a falar às massas, começou:

— Meus senhores... e minha senhoras....

Fez-se um silêncio grave e recolhido, em que se destacava apenas, muito de leve, o ruído dos talheres que continuaram a funcionar ativamente.

— Eu faltaria ao mais sagrado dos deveres....

Uma voz: — Não apoiado.

— ... Si neste momento solene, em que toda a natureza veste-se de gaias para receber em seu vastíssimo seio os noivos presentes... eu, o mais humilde amigo desta casa...

— Não apoiado...

—... não erguesse a minha fraca voz... para saudar... para saudar o himeneu destas duas criaturas (apontando para os noivos) nascidas "no mesmo galho, da mesma gota de orvalho"... como diria o nosso Casimiro de Abreu...

— Bravo! murmurou o mesmo apartista dos não apoiado numa voz cava, com a boca cheia.

O orador, visivelmente inquieto, sem tirar a mão de dentro do bolso, endireitou a gravata com pancadinhas suaves, e, mergulhando o olhar na fruteira, continuou:

— Sim, meus senhores... e minhas senhoras, o casamento é a base de toda a sociedade civilizada; o casamento, como dizia certo escritor, cujo nome não vem ao caso citar... o casamento é a mais nobre de todas as instituições, e o homem que se casa dá um passo para o infinito, isto é para Deus!...

Uma salva de palmas cobriu as palavras do Castrinho, que agradeceu comovido. No peito de sua camisa, muito alva e lustrosa, reluzia uma pedra duvidosa.

Crescia a animação da festa. Os talheres batiam nos pratos com mais força e as palavras do liceista comunicavam ao auditório certo entusiasmo sereno que se traduzia em apetite voraz e insaciável secura nas gargantas. Ouviam-se trabalharem as mandíbulas.

Houve uma pausa depois da qual o Castrinho, tomando o cálice cheio, concluiu com ênfase:

— Portanto, eu brindo ao ditoso par, desejando-lhe um futuro de rosas banhado pelos eflúvios do amor conjugal...

E, escorropichando o cálice:

— Aos noivos!

— Hip, hip, hurra!

Todos se levantaram.

— Loureiro...

— D. Lídia...

— Sr. Castro não quer se servir de um pedacinho de bolo de mandioca? ofereceu a viúva por trás do poeta.

— Agradecido, minha senhora, agradecido... Estou satisfeito.

— Então, mais um copo de vinho...

Aceitava, pois não.

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