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— Não façam cerimônia, minha gente, observou D. Amanda. Já acabou, Sr. João da Mata? Um pinguinho de doce de caju, Sr. Alferes... E você, menina, coma sem cerimônia.

Maria do Carmo não podia disfarçar a tristeza, a ponta de inveja concentrada que lhe tomava de assalto a alma inteira. Sentara-se à mesa por civilidade, para corresponder aos reclamos da viúva, mas o seu único desejo era ir-se embora para casa; a festa da amiga fazia-lhe mal aos nervos, e, demais, o Zuza proibira-lhe de ir a qualquer parte onde ele não estivesse. Fora ao casamento da Lídia, porque o padrinho a obrigara, não por sua espontaneidade. E agora ali estava casmurra, silenciosa, com um arzinho recolhido de filha de Maria, vendo sem ver, ouvindo sem ouvir, as pessoas e os ruídos, numa abstração infinita, no meio de toda aquela gente que festejava o casamento da amiga. Agora, mais do que nunca, por um excesso de sensibilidade nervosa, doía-lhe no coração de pomba desolada não poder, como a Lídia e como outras tantas raparigas felizes, amar livremente, sem ter que obedecer aos caprichos de um padrinho atrabiliário e despótico como João da Mata. Enquanto os outros divertiam-se sorvendo cálices de vinho, saudando aos noivos, ela, toda entregue a seus pensamentos, permanecia muda e bisonha como quando pela primeira vez. apresentara-se à sociedade, logo ao chegar de Campo Alegre, menina ainda, matutinha. Ah! naquele tempo ela tinha o seu papai e a sua mamãe perto de si, não era como agora, anos depois, uma simples, uma pobre, uma desprezada órfã, assistindo com uma grande tristeza egoísta derramada nalma à felicidade alheia triunfante...

— Atenção, meus senhores! Atenção!

Desta vez ia falar o alferes Coutinho, quartel mestre do batalhão, um moreno, de costeletas, cabelo penteado em pastinhas, certo ar arrogante de pelintra acostumado a todas as festas, desde os sambas do Outeiro aos bailes do Clube Iracema, magricela, olhos cavados. Nas horas d’ócio dava-se ao luxo de fabricar sonetos no gênero piegas dos últimos trovadores de salão.

Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de flauta.

Convidado à toda parte, não perdia ocasião de exibir-se na poesia ou na música. Tinha fama de primeiro recitador do Ceará, ninguém como ele sabia marcar um quadrilha, todo enfezado, sempre de lenço na mão, metido invariavelmente na sua farda de alferes com colete branco.

Houve um silêncio profundo. Todas as vistas caíra, de chofre sobre o militar como se de sua boca fossem sair preciosas revelações.

Era o alferes Coutinho? Oh? magnífico! Psiu! psiu!... Silêncio!...

— Meus senhores. Respeitabilíssimas senhoras... Não dispondo de dotes oratórios, tão úteis nas ocasiões solenes como esta, eu, que tenho a honra de pertencer à falange dos discípulos de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Varela e tantos outros astros de primeira grandeza, que brilham no firmamento da poesia brasileira, eu vou ler uns versos de minha lavra, que tomei a liberdade de dedicar aos donos desta festa inolvidável...

Nem um aparte. O mesmo silêncio cauteloso e recolhido. A noiva abaixou a cabeça afetando modéstia e Loureiro fixou o olhar atrevidamente no orador. Mas o Coutinho, calmo e desembaraçado, sacou do bolso da farda um papel, e lendo:

Noite de Núpcias é o título dos pobres versos...

— Não apoiado...

— ... que tenho a honra de oferecer a Excia. Sra. D. Lídia, uma das estrelas mais fulgurantes que ornam o céu da sociedade cearense...

Lídia estremeceu com um belo sorriso de agradecimento,

—... e ao Sr. Dias Loureiro, inteligente e zeloso guarda-livros da nossa praça, ambos, portanto, dignos um do outro e da nossa eterna amizade...

— Apoiadíssimo, confirmou Carvalho & Cia, palitando os dentes.

Sem mais preâmbulos, o alferes entrou a declamar com uma convicção admirável os tais versos de sua lavra, uma enfiada de palavrões antigos e bolorentos, que ele procurava animar com sua voz de trovão, seca e cavernosa, brandindo o papel com a mão esquerda e a direita gesticulando como se estivesse a marcar compasso de música.

Ao terminar o último verso —

"Chovam bênçãos de amor sobre os que casam!"

Uma salva de palmas forte e prolongada ecoou na pequenina sala.

— Bravo! muito bem! muito bem!

E o poeta sentou-se agradecendo com repetidos movimentos de cabeça as manifestações de que era alvo. Diversas pessoas levantaram-se e foram cumprimentá-lo de perto. Um velho calvo que se sentava a seu lado, lembrou-se de perguntar-lhe ao ouvido "Se o Sr. Alferes era cearense".

— Não senhor, respondeu o Coutinho, voltando-se gravemente, sou guasca, nasci na cidade de Porto Alegre.

E contou quando viera para o ceará, disse a sua grande simpatia por essa província e que pretendia casar com uma cearense.

O "brinde de honra" foi feito em duas palavras por Carvalho & Cia à D. Amanda, "encarnação de todas as virtudes domésticas, senhora de incomparável brandura e sisudez".

— Hip! hip! hip! hurrah!

Foi um delírio esse final de banquete nupcial, em que tomavam parte o exército representado pelo Alferes Coutinho, a poesia na pessoa do autor de Flores Agrestes e o comércio em grosso simbolizado no ventre obeso de Carvalho & Cia. Esgotaram-se as botelhas de vinho do Porto e de cerveja com um açoitamento de quem não bebia água há três dias e depara uma piscina abundante do precioso líquido. E, ao levantarem-se da mesa, os convidados olhavam com soberano desdém a toalha manchada de nódoas de vinho sobre a qual havia um confusão grotesca de copos e pratos em desordem, abandonados ali como restos de um festim sardanapalesco. Uma coisa tinha sido respeitada e conservava-se no mesmo lugar em que fora colocada pela mão zelosa de D. Amanda, era o paliteiro de prata representando um alcaide com chapéu de três bicos e aspecto napoleônico, de braços cruzados , numa imobilidade de objeto de luxo que se receia tocar por escrúpulo.

Os espectadores intrusos evacuaram o corredor com a mesma facilidade de ligeireza com que se tinham introduzido e depressa a sala de jantar ficou entregue à viúva e ao criado. que se ocuparam de cobrir os restos dos bolos, recolhendo-os ao guarda-comidas. O troço dos comensais, homens e senhoras, enchiam a sala de visitas, cujas cadeiras estavam todas ocupadas, e palrava agora desembaraçadamente numa atmosfera pesada de fumaça e heliotrópico, — umas abanando-se com os grandes leques de cetim, outros com os lenços , porque o calor crescia. Transpirava-se por todos os poros, o que fazia o alferes Coutinho trazer constantemente o lenço no pescoço, resguardando o colarinho, onde já havia sinal de suor. A janela estava tomada por algumas pessoas que formavam roda ao redor do Loureiro, em pé. Senhoras entravam e saíam da alcova com ar desconfiado, compondo discretamente os vestidos.

Deram dez horas no relógio da Sé, cujas badaladas faziam-se ouvir, graves e sonolentas, em todo o âmbito da cidade.

Dez horas! Carvalho & Cia. consultou o relógio. Havia uma pequena diferença de dez minutos. Safa! o tempo voava!.

E, alto, levantando-se:

— Vamos, Quininha?

— É muito cedo, acudiu a Lídia, que conversava com Maria do Carmo no sofá.

— É verdade, minha gente, saltou D. Terezinha, saindo da alcova. Os noivos precisam descansar. Dez horas!

— Estávamos tão distraídos! disse o alferes Coutinho puxando os punhos.

— Vamos, vamos, repetiram muitas vozes.

— É cedo, minha gente! implorava a Lídia muito amável, com um sorriso de irresistível faceirice.

Imediatamente todos se levantaram impulsionados pela mesma idéia, à procura dos chapéus, num reboliço crescente, aos encontrões, enfiando pela alcova e pelo corredor.

Estrondou um bocejo senil e demorado, que se propagou por ali a fora — era o velho calvo, de óculos, que se tinha encafuado a um canto da sala cochilando, e que despertara agora num espreguiçamento como se estivesse em sua própria casa.

As senhoras agasalhavam-se nos fichus, defronte do espelho.

D. Amanda, de um lado para outro, de dentro para fora da alcova, não descansava as pernas.

Começaram as despedidas.

Que de beijos estalados à queima roupa! Em pé no meio da sala, os noivos, competentemente formalizados, agradeciam reconhecidos a chuva de felicitações que caiam sobre eles à guisa de flores desfolhadas sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que Lídia ia distribuindo a uns e outros botões de laranjeiras.

Que fossem muito felizes; que tivessem uma eterna lua-de-mel; que fossem muito unidos sempre como dois irmãos; que não esquecessem as velhas amizades...

— Olhe, minha filha, aconselhou D. Terezinha com a mão no ombro da Lídia, depois de a ter beijado. Olhe, seja sempre boa para seu maridinho, faça o que ele quiser, o que ele mandar. O homem é que faz a mulher e a mulher é que faz o homem. Adeus, ouviu?

Todos tiveram mais ou menos o que dizer aos noivos.

— Não esqueça o que lhe pedi, ouviu Lídia? recomendou de fora uma voz de mulher.

— Boa noite!

— Sejam felizes!

— Durmam bem!...

Em pouco todos tinham se retirado. Havia ainda alguns curiosos fora, na calçada. Loureiro mandou aproximar o carro que o esperava. A rua estava silenciosa e escura como se fosse alta noite. Defronte, em casa de João da Mata, fecharam-se as portas apagando-se completamente a última luz que clareava aquele trecho da rua do Trilho.

D. Amanda chamou a filha à alcova onde estiveram conversando alguns minutos, e depois, abraçando-a ternamente com os olhos úmidos:

— Deus os conduza em paz...

Lídia beijou comovida a mão da viúva e, dando o braço ao Loureiro, entrou no carro que rodou em direção de Benfica, com a sua luzinha amarela tremeluzindo no escuro.

Minutos depois D. Amanda recebia, como de costume, o Batista da Feira Nova...

10

Quando chegaria sua vez? pensava Maria do Carmo nessa noite, sem poder conciliar o sono, com um desalento profundo no coração apreensivo. Que tal , hein? O Sr. Zuza não se resolvia a pedi-la em casamento, sempre com evasivas, pretextando tolices, como se estivesse tratando com uma biraia qualquer! Porque isso? porque não se decidia logo a dizer a verdade fosse ela qual fosse?

Era sempre melhor do que estar perdendo tempo sem tomar uma resolução franca e definitiva. Quem sabe? talvez o padrinho não fizesse questão agora que a tratava tão bem, que lhe fazia todas as vontades... Uma felizarda a Lídia!... Casara com um guarda-livros, mas embora, casara...

E imediatamente vinha-lhe uma confiança ilimitada no estudante. Já estava tão acostumada com ele que nem era bom pensar em uma deslealdade. Paciência, paciência — Roma não se fez em um dia... Consolava-se ao penar nas confidências íntimas do futuro bacharel, embebidas de ingênua e tocante sinceridade, na franqueza ativa com que ele dizia todas as suas idéias e todas as suas ações, como se já fossem noivos. Zuza contava-lhe tudo com a maior simplicidade, dava-lhe conta de seus passeios, de seus planos, de suas intenções.

Pode-se mesmo dizer que não havia segredo entre os dois. Era lá possível que o Zuza, aquele Zuza tão amável, tão sincero, tão bom a esquecesse, ele que reprovava com frases repassadas de indignação o procedimento de certos indivíduos para quem a mulher outra coisa não é senão uma espécie de fruto amargo que a gente prova e deita fora? Qual! O Zuza era incapaz de descer até onde começava o rebaixamento do caráter de um homem...

Animava-se ao fazer estas considerações tão simples, tão espontâneas, saídas do mais íntimo de sua alma enamorada. Tinha momentos em que tudo afigurava-se-lhe uma comédia, cujo protagonistas — o estudante — aprazia-se em vê-la rendida a seus pés por um simples capricho de rapaz do mundo que se diverte à custa de muitas raparigas como ela, ainda não corrompidas pelos costumes modernos. Nascida no interior de uma província essencialmente católica, educada em um colégio religioso, o convívio com as suas colegas da Escola Normal não lhe apagara de todo essa bondade característica dos filhos do sertão, que se revela em uma confiança ingênua nos outros. Por isso é que ao mesmo tempo Maria não podia acreditar que o Zuza faltasse à sua palavra para com ela. Duvidava às vezes, mas não perdia de todo a confiança, porque amava deveras, e o amor transforma a pessoas ou objeto querido numa espécie de ídolo, que a gente adora como a um modelo de virtudes incomparáveis.

Quando chegaria sua vez? E a figura de João da Mata surgia-lhe aos olhos como uma visão pavorosa, que a fazia estremecer da cabeça aos pés. Sim, o padrinho não gostava que se falasse no Zuza, implicava com ele, odiava-o gratuitamente, sim, gratuitamente, porque o rapaz nunca lhe fizera o menor mal, até pelo contrário, uma vez lhe emprestara cinqüenta mil réis, e ela o sabia pela boca de D. Terezinha. Que infelicidade, a sua, que caiporismo! além do padrinho não gostar do Zuza, aquela casa parecia agora um verdadeiro inferno: era o padrinho para um lado e a madrinha para o outro, ambos de cara fechada, sem se trocarem palavras, e ela, Maria, para um canto, coitada, sem amigas, sem parentes, vivendo uma vida de criminosa...

Que maldito inferno!... Antes nunca tivesse nascido.

Onze horas... meia noite! e ela ainda velava, sem um bocadinho de sono, a matutar na vida, a pensar em frioleiras.

Entrou a parafusar no casamento da Lídia, rememorando toda a festa, tintim por tintim, com a pachorra de quem procura armar um castelo de cartas. — Assim mesmo tinha ido muita gente, sim senhora, parecia até uma festa de gente rica. Inegavelmente a Lídia estava encantadora debaixo do véu de noiva. Nunca vira a igreja de N.S. do Patrocínio tão cheia de povo! Ah! mas fora uma coisa horrorosa o escândalo provocado pelo Guedes. Que horror! Se fosse ela, Maria do Carmo, teria caído no meio da rua com um ataque...

Palpitavam-lhe a imaginação, como num sonho, os menores acidentes daquela noite, em que todos tomaram o seu cálice de vinho e só ela, irressistivelmente mordida de inveja por ver a sua maior amiga num torno de felicidade, ela somente se deixara ficar esquecida como qualquer lagalhé, na impotência da sua tristeza. Entretanto, se não fora o padrinho, ela também podia breve estar de caminho para a igreja, ao lado de seu noivo, metendo inveja às outras. Então é que a festa seria d’estrondo! O coronel Souza Nunes abriria o seu salão iluminado como um palácio real, e haveria dança e música e um banquete lauto. E iria o presidente da província e toda a gente grande do Ceará. Que bom que seria!...

Nisto adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão com as calças arregaçadas e um barril na cabeça a gritar —Arre corno! cercado de garotos que lhe atiravam pedras e sacudiam-lhe punhados de farinha-do-reino na carapinha, por detrás no meio de gritos e assobios.

Depois o preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada de imundícias, e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço de Circo, uivando uma porção de asneiras, que a molecagem replicava sempre com o mesmo estribilho, a uma voz: — É sim, sinhô!

Depois.... (não se lembrava o resto)

Davam duas horas no relógio do vizinho, quando acordou muito assustada e nervosa, a olhar para todos os lados, sem consciência exata do ambiente que a cercava. Teve um sobressalto ao ver sobre uma cadeira, perto da rede, o vestido com que fora ao casamento. — Credo, que susto!

A luzinha da vela de carnaúba agonizava numa poça de cera derretida.

E essa! Era a segunda vez que sonhava com o Romão, sem quê nem p’ra quê... Com certeza estava para lhe suceder alguma desgraça. Que esquisitice! hum, hum,...

A porta do quarto, que se conservava entreaberta, rangeu nas dobradiças, como se alguém a empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor terrível; arrepiaram-se-lhe os cabelos, e uma extraordinária sensação de frio percorreu-lhe o sangue. Ficou assombrada, sem se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados, numa prostração de quem está sem sentido. Pareceu-lhe ouvir chamar pelo seu nome e então subiu um ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça de ferro. Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou a fechá-los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço supremo para gritar, para chamar alguém, mas não podia abrir a boca, estarrecida.

Maria? repetiu a mesma voz, que ela julgava ouvir, uma voz fina, mas abafada, como se saísse das entranhas da terra.

E logo:

— Sou eu, Maria. É o padrinho...

De feito, João da Mata vinha-se chegando, pé ante pé, subtilmente, segurando-se à parede, equilibrando-se na ponta dos pés, como um ladrão, sem o menor ruído, com estalinhos de juntas.

Maria encolheu-se toda debaixo do lençol duvidando. Tremia como um doente de sezões, embiocada que nem caracol.

— Não grites, Maria, olha sou eu, teu padrinho, tornou João da Mata, agora quase ao ouvido da afilhada, agarrando-se ao punho da rede.

A rapariga respirou forte, como se saísse de dentro de um buraco, e pôde abrir os olhos, meio aliviada, presa ainda de uma grande comoção. Ao medo sucedera-lhe uma apreensão dolorosa, que o seu espírito repelia como impossível. Não teve tempo de associar idéias, porque o amanuense foi se sentando na rede, a seu lado. — O padrinho por ali, no quarto d’ela, àquelas horas?... Estaria sonhando?...

— Padrinho...

— Sou eu mesmo, minha flor... Olha, queres saber uma coisa?... Deixe-me descansar um bocadinho e eu te direi, ouviste?... Espera...

— Mas, padrinho!...

— Olha, não fales alto... Sou eu, estás ouvindo? eu, teu padrinho mesmo... Bico...

Maria do Carmo não compreendeu logo a presença de João da Mata ali

no seu quarto, àquela hora.

Fez-se uma confusão inextricável, caótica, no seu espírito subitamente assaltado por um turbilhão de idéias sem nexo, disparatadas; o coração pulsava-lhe forte, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço; operava-se em seu duplo ser moral e físico um desses abalos extraordinários, que deixam a gente numa prostração invencível. Pela primeira vez na sua vida achava-se frente a frente com um homem, alta noite, no silêncio de um quarto escuro. Mal acordada do terrível pesadelo que acabava de ter, vendo ainda, esboçada na sua imaginação, a figura hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso e alvar, o peito à mostra, a venta chata, ela permanecia imóvel, olhando para o escuro como uma idiota.

A luz tinha se apagado completamente. Ouvia-se a respiração asmática da criada no quarto pegado à sala de jantar. Longe, nalgum quintal, ladrava um cão. Ao calor insuportável sucedia o friozinho bom da madrugada.

João estava em ceroula, nu da cintura para cima. Desde que chegara da festa do Loureiro não fechara os olhos, a fumar no seu cachimbo curto, que preferia às vezes aos cigarros, andava-lhe na cabeça o plano há muito formado, de ir ao quarto da afilhada uma noite. Nada mais fácil: da sala de jantar, onde dormia agora, ao quarto eram dois passos; o diabo era se a menina abrisse a goela a chamar por gente, isto é que era o diabo!... Qual! ela não tinha coragem para tanto, mormente sabendo logo que era ele, o padrinho. — Mãos à obra, João; nada de pensar em asneiras. Isso a gente inventa uma história de embalar crianças, diz que a vida é esta, e ... foi um dia uma donzela. Oh! pois ela não é tua afilhada! demais, meu besta, já lhe pegaste umas tantas vezes no bico dos seios, sem que ela reagisse, a Maria, naturalmente porque sabes encampar a tua autoridade de padrinho. E depois, que diabo! Quem arrisca... Um, dois...

E, com um salto, o amanuense levantou-se, dirigindo-se ao quarto da rapariga, cosendo-se às paredes, macio, cauteloso, todo agachado, pisando devagar, no bico dos pés descalços.

A fresca da madrugada arrepiava-lhe o tronco magro e cabeludo.

Ah! como se sentia bem agora, sentado na mesma rede em que ela dormia, sozinho com ela, adivinhando, no escuro, toda a incomparável perfeição de suas formas rechonchudinhas de rapariga nova! O calor brando do corpo dela comunicava-se agora a seu corpo, infiltrando-lhe no sangue um fluído bom e vigoroso.

Sentia-se forte como um touro, ali assim a seu lado, ele, um pobre homem sem força, um magricela sem carnes.

E Maria esperava, numa aflição, o desenlace daquela trapalhada que ela não compreendia bem.

Estiveram ambos calados alguns minutos até que o amanuense, escorregando para o fundo da rede, pousou a mão sobre o ombro da afilhada, segredando-lhe — se ela estava com frio?

— Frio? ... não ...

— Pois olha, na sala de jantar, faz um frio dos demônios. Por isso eu vem para junto de ti...

Maria não disse nada.

Então o amanuense começou com uma lengalenga, um despropósito de palavras murmuradas como uma oração, numa voz que mal se ouvia, inclinado sobre a afilhada, sufocando-a com seu hálito nauseabundo, roçando-lhe no rosto a ponta da barba.

— Olha, Maria, dizia-lhe, tu não sabes quanto eu abomino o Zuza... Há muito tempo que estava para te dizer umas certas coisas, mas era preciso segredo, muito segredo... Agora, que estamos sós, deixe que te fale com franqueza... Tu amas o rapaz, não é assim? Não mintas... sei que gostas muito dele, e até já se fala, na rua, em casamento. Ainda hoje alguém afirmou-me que vocês se beijam na Escola Normal. Eu sei de tudo, minha afilhada, eu sei de tudo. Mas, olha bem o que te digo, tudo depende de ti, só de ti...

Maria estremeceu no fundo da rede, debaixo do lençol, e sentiu-se irressistivelmente presa às palavras de João da Mata. Se ele a quisesse deixar, nesse momento, ela não consentiria, tão viva era a sua curiosidade, agora que o padrinho lhe falara do Zuza; e o movimento quase imperceptível da rapariga não passou despercebido a João da Mata.

— Sim, minha cabocla, tudo depende de ti, porque eu também te quero muito bem e não consentiria nunca nesse casamento, se... Olha, deixa dizer-te ao ouvido...

E, colando a boca ao ouvido de Maria:

— ... se não fosses boa para teu padrinho.

Pouco a pouco o amanuense ia deitando ao lado da rapariga, acotovelando-a, machucando-a com o seu corpo ossudo, devagar, cautelosamente.

"—Estava bem armada a rede? Era preciso comprar outra mais larga, mais rica..."

Um grilo entrou a cantar monotonamente num canto do quarto — testemunha oculta daquela cena inacreditável.

Entretanto Maria não dava palavra, com as pálpebras pesadas de sono, respirando a custo, numa espécie de inconsciência muda, como hipnotizada. Este estado porém durou pouco; espreguiçou-se, puxando o lençol para se cobrir melhor e começou a achar certo encanto naquela intimidade secreta, ombro a ombro com o padrinho. Seu instinto de mulher nova acordara agora obscurecendo-lhe todas as outras faculdades, ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos de João da Mata. Coisa extraordinária! aquele fartum de suor e sarro de cachimbo produzia-lhe um efeito singular nos sentidos, como uma mistura de essências sutis e deliciosas, desconcertando-lhe as idéias. Uma coisa impelia-o para o padrinho, sem que ela compreendesse exatamente essa força oculta e misteriosa.

E quando ele, num tom paternal e amoroso, lhe falou no Zuza, Maria teve um frêmito bom, como se tivesse caído por terra o paredeiro que mediava entre ela e o estudante. Tudo dependia dela, somente dela... Ficou a pensar nestas palavras, sem atinar com o seu verdadeiro sentido, alheada, os olhos fitos, quase sem pestanejar, na telha de vidro, por onde escoava agora uma claridade tênue de alvorada;

João respirou, e, passando-lhe o braço por trás do pescoço:

— Então?...

— É quase dia, padrinho, podem nos ver assim...

— E que tem? já nos têm visto tantas vezes? Agora espera, só me vou se me deres uma boquinha...

E, sem esperar resposta, o amanuense beijou-a na face, apertando-a contra si, numa impaciência de quem não tempo a perder.

Maria repeliu-o brandamente.

— Juro-te, continuou ele, juro-te que casarás com o Zuza, mas por amor de Deus, deixa... ou não contes comigo para coisíssima alguma. Por alma de tua mãe que está no céu. Olha, sou eu quem te pede... Ninguém saberá, o próprio Zuza não poderá saber nunca... É como se não tivesse havido nada, são segredos que não aparecem, sabes? Eu te peço...

Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista, como um clarão que de repente iluminasse todo o quarto. ao mesmo tempo que uma luta medonha travava-se dentro de si, sem lhe dar tempo a pensar. Estava justamente em vésperas de ter o incomodo. Toda ela vibrava como uma lâmina de aço ao contato daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso, transformando-a numa criatura inconsciente atraída por um poder extraordinário como o de uma cobra sobre um rato.

As palavras do padrinho, embebidas de voluptuosidade e o nome do Zuza pronunciado naquele instante e, mais que tudo isso, a invocação feita à alma de sua mãe, confundiam-lhe os sentidos, acordando no coração de donzela o que tinha de mais delicado. teve piedade de João, como se ele fosse na verdade o mais desgraçado dos homens. Sentiu-o a seu lado, humilde como um ser desprezível que reconhece a sua baixeza, com uma tremura na voz, rendido, suplicante, e não teve coragem de o enxotar, de dar-lhe com a mão na cara e de desaparecer para sempre d’aquela casa imoral, onde ela vivia tristemente com as doces recordações de seu passado, como uma flor que vegeta num montão de ruínas. Ao contrário d’isto, a visível submissão do padrinho, doera-lhe nalma como a ponta d’uma lanceta. Sem o saber, João da Mata encontrou a afilhada numa dessas extraordinárias predisposições de corpo e alma. em que, por mais forte que seja, a mulher não tem forças para resistir às seduções de um homem astuto e audacioso. Conhecia suficientemente o gênio de Maria — nada mais, e isto lhe bastava para que a vitória fosse certa, infalível.

De resto, algumas palavras atoa murmuradas à surdina, o contato morno de um corpo viril... e Maria do Carmo aumentava o número de suas dores.

A madrugada veio encontrá-la de joelhos, mãos juntas, duas grandes lágrimas no olhar, como um anjo de sepultura, defronte da oleografia de Cristo abrindo o coração à humanidade. Nunca o doce e meigo olhar de Jesus pareceu-lhe tão meigo.

Era domingo. Cantavam galos de campina nas ateiras do quintal. E enquanto, lá fora, a cidade acordava e a vida recomeçava seu eterno poema de alegrias e dores, Maria procurava no coração de Jesus um conforto para seu doloroso arrependimento.

11

Maria do Carmo passou uma semana inteira, oito dias consecutivos, sem ir à Escola Normal, sem pôr os pés na rua, sucumbida , mortificada, com receios de encarar os conhecidos, sem ânimo para se apresentar em público.

Se até então a vida fora-lhe um nunca acabar de desgostos e contrariedades, o que seria agora, depois de se ter comprometido levianamente para todo o resto da sua existência, entregando-se, num momento de desvario dos sentidos, aos desejos concupiscentes do padrinho?

Estava doida, não havia que ver, estava doida naquele momento, não tinha um bocadinho de juízo! Devia ter visto logo que uma mulher de certa ordem não se entrega por força alguma d’este mundo a outro homem, que não seja o seu marido, o dono de seu coração, o legítimo esposo de seu corpo e de sua alma. Que desgraçada imprudência a sua! Que vergonha, santo Deus, que vergonha! Era para isso que se tinha coração, para se deixar cair numa armadilha daquela... Se fosse uma mulher forte e resoluta, capaz de todos os escândalos, contanto que soubesse guardar a sua honra... bem, não teria sucedido nada. Mas, não : fora uma grandíssima tola, uma menina d’escola, deixando-se levar pelo coração até o ponto de compadecer-se do padrinho! Que infelicidade!...

E chorava que nem uma criança, com a cabeça no travesseiro, metida no seu quarto, dizendo-se a mais infeliz de todas as mulheres, supersticiosa ao peso de sua culpa irremediável, com grandes manchas lívidas ao redor dos olhos, inconsolável na sua dor..

Às vezes supunha estar sonhando, como que procurava iludir-se a si própria, enxugava os olhos na ponta do lençol, via-se ao espelho e experimentava um bem-estar passageiro, um conforto muito íntimo; mas punha-se logo a pensar, a fazer consigo mesma mil conjecturas, e desandava outra vez num choro silencioso, que lhe sacudia o corpo todo em estremecimentos nervosos. Não sabia bem porque chorava; uma coisa, porém, dizia-lhe que nunca mais seria feliz em sua vida, desde o momento que, por sua condescendência imperdoável, entregara seu corpo àquele homem...

À proporção que os dias passavam, sucedendo-se numa monotonia aborrecida, uniformes como os elos d’uma grande cadeia de ferro, crescia o desânimo em Maria do Carmo, cujas feições transformavam-se a olhos vistos. Tomava-lhe o rosto uma palidez de reclusa macerada pelos jejuns, cavavam-se-lhe os olhos, onde se refletia visivelmente o estado de sua alma, e os cabelos iam perdendo aquele brilho resplandecente que era o desespero do Zuza. Em uma semana sua fisionomia adquiria uma expressão iniludível de dor concentrada.

No sábado recebeu um bilhete da Lídia convidado-a para jantar com ela no dia seguinte. "Espero-te sem falta. Todas as minhas amigas tem vindo me visitar, menos tu. Creio que não te dei motivo para procederes deste modo. Por andar incomodada é que ainda não fui te ver".

Quedou-se numa imobilidade profundamente triste, com a face na não, a olhar para a letra da amiga, escrita em papel-amizade, e ficou assim muito tempo, como num êxtase. Veio-lhe a mente o Zuza. Já não se lembrava d’ele, toda entregue à sua dor. Há uma semana que não o via, nem sequer tinha notícia dele, e agora o estudante aparecia-lhe vagamente na imaginação como a lembrança remota de uma coisa que se viu em sonho. As lágrimas começaram a cair-lhe dos olhos duas a duas, silenciosamente, sobre o bilhete de Lídia.

Uma... duas...

Duas horas da tarde. O amanuense ainda não tinha voltado da Repartição. D. Terezinha costurava na sala de jantar, cantarolando uma modinha cearense em desafio com o sabiá, que desferia seu eterno e monótono dobrado, esquecido ao sol. Havia no tépido interior d’aquela casa a calma preguiçosa d’essa hora do dia, em que se ouve o voar do moscardo impertinente e cantos do galo ao longe, nos quintais. Mariana suspirava na cozinha às voltas com as panelas, cachimbando. Sultão, esse dormia tranqüilamente o seu sono do meio-dia aos pés de D. Terezinha, orelhas murchas, deitado de banda.

Todos os dias, invariavelmente, era a mesma quietação, a mesma sonolência, o mesmo ramerrão, até que viesse o amanuense com as suas hemorróidas ou com sua cachaça dar à casa o ar de sua graça. Freqüentemente João chegava às quatro horas, demorando-se às vezes até às cinco, o que não era muito raro.

Nesse dia, porém, antes que o velho pêndulo da sala de jantar marcasse quatro horas, entrou de chapéu na cabeça, como de costume, para não constipar, e foi direto ao quarto da afilhada.

"— Como tinha passado o dia? Muito fastio ainda!" — E puxando uma cadeira sentou-se ao lado de Maria, que ainda se conservava deitada.

Ao pé da rede, sobre a esteira gasta, eternizava-se uma tigela com o resto de caldo onde flutuavam moscas. João fez um gesto de aborrecimento, e apanhando a tigela:

— Mariana!

Demônio de gente! Naquela casa ele é que fazia tudo, e, se havia uma pessoa doente, era o mesmo que nada.

— Mariana!

— Inhô!

— Não está ouvindo chamar, seu diabo!

D. Terezinha continuava a cantarolar, sem se dar por achada, por pirraça.

Mariana apareceu à porta do quarto, sem casaco, os seios moles, dentro da cabeção da camisa tisnada. pés descalços, cabelos assanhados.

João mediu-a com olhar, d’alto a baixo, e entregando-lhe a louça:

— Por que ainda não tirou isto?

— Estava cuidando do jantar...

— Cuidando no jantar, hein? Cuidando no jantar?... Burra!...

A criada, porém, deu-lhe as costas e saiu rindo com seu ar idiota.

Uma pessoa somente interessava-se pela saúde de Maria do Carmo — era ele, João da Mata, cujos cuidados para com ela redobravam dia a dia.

D. Terezinha, essa nem sequer chegava à porta do quarto, resmungando sempre, rogando pragas, dizendo indiretas, que Maria do Carmo ouvia com lágrimas nos olhos.

Nunca João fora tão bom para a afilhada como agora: Trazia-lhe mimos da rua, bons bocados, confeitos, rendas, com uma solicitude paternal, animando-a, prometendo-lhe muitas felicidades, contando-lhe tudo quanto ouvia dizer na rua, dando-lhe notícias dos conhecidos.

— Teve febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se.

— Não sei...

— Deixe ver o pulso... Não, nem um bocadinho... Bom, não se amofine, hein, não se amofine. Amanhã, se Deus quiser, pode levantar-se. E baixo:

— Tolice... Morrendo sem quê nem para quê! Se continuas, é pior... podem até saber... Isto a gente faz cara alegre e vai para a adiante, com as outras, minha tola... Olha a tua amiga Lídia... Casou e casou bem... E assim a maior parte... Deixa de tolices.

Logo no dia seguinte à noite do seu defloramento Maria do Carmo queixou-se de fortes dores de cabeça e nos quadris, indisposição geral, e uma ausência quase absoluta de apetite. Não podia ver comida de espécie alguma nem sentir ao menos cheiro de guisados. Tudo a enjoava provocando-lhe náuseas. Cada vez que se lembrava de João vinham-lhe arrepios na pele e "agasturas na boca do estômago".

Pungia-lhe uma espécie de remorso, que a fazia passar horas inteiras numa abatimento medonho, encafuada no quarto, sem coragem para continuar a vida como dantes. Lamentava-se como uma desgraçada: — Que vida! que vida!

Não quis almoçar e passou o dia com uma xícara de café, que a Mariana lhe levara.

D. Terezinha não se abalava: era como se Maria do Carmo não existisse. Que fosse para lá com seus faniquitos, não tinha obrigação de criar filhos de ninguém. Antes de ir para a Repartição João lhe recomendara: — Olhe: Maria amanheceu doente. Está com uma pontinha de febre, não a deixe morrer de fome , hein...

Foi como se não recomendasse, porque D. Terezinha nem sequer pôs os pés no quarto da rapariga. Limitou-se a dizer à criada: — Ouviste! Não deixes morrer de fome a mimosa.

Ah! esse desprezo, essa indiferença da madrinha doía nalma de Maria como um insulto. Lembrava-se às vezes de a mandar chamar e pedir-lhe por amor de Deus que não a tratasse assim, que não a desprezasse... Mas ao mesmo tempo achava que isto era confessar a sua culpa, porque na verdade nunca houvera ente elas causa para o mais leve rompimento, a não serem as impertinências de João da Mata. Que culpa tinha ela se o padrinho dissesse desaforos à mulher?

E assim ia passando agora, abandonada, sem uma pessoa que se interessasse verdadeiramente por sua sorte, a não ser João da Mata.

— Trataram-na bem? perguntava o amanuense ao voltar do trabalho.

— Trataram... murmurava ela.

Mas a verdade é que Maria passava uma vida miserável De manhã, enquanto João ainda estava em casa, ele mesmo ia levar-lhe o café com torradinhas de pão, mas, depois, ela ficava entregue à preguiça da criada e à indiferença da madrinha, em termos de morrer de fraqueza. Davam-lhe um caldo ao meio-dia, único alimento com que ela esperava o jantar às quatro horas, quando o padrinho viesse. Por fim quase não podia suportar aquilo, e nove dias depois, um domingo, levantou-se resolvida a ir jantar com Lídia, ao menos por desfastio, que aquela casa era um horror! Mostrou a João a carta da amiga, acrescentando que até era bom para ela passar o resto do dia fora, no Benfica, ouvir tocar piano, distrair, enfim, porque andava muito triste.

O amanuense aprovou prontamente: que sim! mas era preciso saber se já estava completamente boa, se não sentia mais nada.

— Mais nada, passei muito bem a noite.

João tomou-lhe o pulso com carinho.

— Pois bem, vista-se e vamos. Amanhã pode até ir à escola, não é assim?

E, noutro tom:

— Não vale a pena a gente se amofinar por qualquer coisa, filha. A vida é isto mesmo — andar p’ra diante sempre com a cara alegre. Vamos, vá se vestir.

Ainda não tinha dado meio dia no pêndulo. Maria foi ao quarto, abriu baús, mais consolada, escolheu o melhor de seus vestidos de cretone, um azul de riscados brancos, em pouco saiu do lado ao padrinho, traçando o fichu, sem dar palavra a D. Terezinha.

Ninguém na rua do Trilho, deserta àquela hora como uma rua d’aldeia.

Seguiram para a Praça Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente na praça ensombrada por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos sentados um defronte do outro, jogavam silenciosamente o dominó no Café Java: Às portas da Maison Moderne famílias esperavam os bonds em pé, silenciosas, com ar de infinito aborrecimento. Dentro jogava-se bilhar. Muitas pessoas rodeavam uma das mesas para ver jogar o presidente, que, em colete, escanchado num ângulo da mesa, calculava o efeito das bolas. Maria teve um estremecimento ao vê-lo. Certo o Zuza também andava por ali... Instintivamente procurou-o com o olhar. O José Pereira tomava cerveja a um canto mais o Castrinho.

Os bonds iam chegando uns atrás dos outros , enfileirados.

Antes de subir para o de Pelotas, Maria lançou um último olhar à sala de bilhares. O José Pereira sem o Zuza! Era realmente assombroso!

Mas d’aí a pouco o bond rodava outra vez caminho do Benfica, e invadiu-lhe o coração uma melancolia sem causa, uma tristeza vaga que lhe deu vontade de estar só, de voltar à casa.

Lídia veio receber a amiga de braços abertos, muito alegre, de branco, com papelotes no cabelo e sandálias de cetim. — Ora, até que enfim! Já não a esperava mais, Sra. D. Maria. Noiva de fidalgo... pudera!

— Não diga isso, minha negra. não vim há mais tempo, porque tenha andado adoentada. Tu não imaginas...

Cobriam-se de beijos.

Lídia mandou-os entrar para a sala de visitas.

— Como vai D. Terezinha, Sr. João? perguntou maliciosamente escancarando as janelas.

— Bem, respondeu o amanuense num tom seco, pondo o chapéu sobre uma cadeira. E logo... — Homem, isto está que nem um paraíso!

— Qual paraíso! Está nos debicando?...

— Não senhora, longe de mim tal pensamento. O que digo é a verdade. O Loureiro preparou isto à fidalga.!

E ia examinando, através dos detestáveis óculos escuros, os quadros, o papel da sala, o piano, os bibelots, com uma curiosidade infantil, estendendo o olhar de vez em quando até o interior da casa, disfarçadamente.

Maria tinha-se sentado no sofá e por sua vez confirmava a admiração do amanuense: — Sim, senhora, tudo muito bem arranjadinho, muito chique...

— Vejam só, vejam só, a graça! repetia a outra, sentando-se ao lado da amiga.

— E o Sr. Loureiro como ia? inquiriu Maria.

— Bem menina, muito atarefa do com o emprego. É uma vidinha cansada, esta de guarda-livros. O Loureiro, coitado, não tem sossego de espírito. Vive na loja, e, ainda por cima, trabalha em casa. Um horror! Tu é que estás magrinha: estou te achando tão abatida, tão pálida...

— Saudades tuas...

— Saudades, eu sei de quem...

Riram.

— Agora é que reparo, continuou Lídia muito amável, tira o fichu e vamos ver a casa.

E levantando-se:

— Preciso conversar muito contigo. Já não te lembravas de mim, hein?... Sr. João tenha a bondade de esperar um pouquinho — o Loureiro não tarde: está às voltas com a papelada.

— Oh! minha senhora...

João da Mata deliciava-se a observar os quadros e as estatuetas de terracota, de mãos para trás, como se estivesse numa exposição. Depois chegou à janela por onde entrava um arzinho puro impregnado de essência de resedás. Defronte enchia a vista o verde sombrio d’uma esplêndida floresta de cajueiros onde oscilavam pequeninos pontos amarelos e vermelhos quebrando a monotonia da paisagem larga e igual, batida de sol. O palacete azul do Loureiro perdia-se num fundo de verdura. À direita, lá longe, na esquina de um grande sítio, passava a linha de bonds. E que frescura! Dava vontade à gente pecar muitas vezes por dia, como Adão no Paraíso, ali assim, naquele pedacinho do Ceará, sem seca e sem política, entretendo relações sentimentais com a natureza agreste e sincera.

— Bom para se copiar um balanço, isto aqui, costumava dizer o ingênuo guarda-livros.

João pôs-se a contemplar, com um enlevo nalma, toda essa poesia selvagem iluminada por um sol implacável.

De súbito:

— Olá, seu Mata, como vai você? Que milagre foi este?

Era o guarda-livros, em chinelos, calça branca e paletó de seda amarelo.

João voltou-se.

— Oh!... Estava admirando a grandeza do Criador... Você assim mesmo tem gosto, seu Loureiro, você é um danado, homem! Sim, senhor, isto aqui é um maná! Faz vir água à boca.

— Escolhi este local por ser muito isolado da civilização. Detesto o ruído da cidade...

— Tens também a tua veia poética, hein?

— Qual veia poética! Isso de versos não é comigo. Tenho até horror à poesia. O que eu quero é sossego, o bem estar, o conforto...

— Fazes muito bem, filho, não há nada como se viver no seu cantinho com a sua mulher e os seus filhos, comendo com o suor do seu rosto. Eu, se pudesse fazia o mesmo — deserdaria da capital, do centro da civilização, para viver comodamente, bem longe de toda essa porcaria que se chama sociedade. Fazes muito bem. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.

— E você como vai?

— Homem, assim mesmo: nem p’ra diante nem p’ra trás, remando contra a maré... Têm-me aparecido umas doresinhas do lado esquerdo...

— Por que não usa você o vinho de caju?

O guarda-livros fez a apologia do vinho de caju, citando casos de curas assombrosas produzidas pelo uso quotidiano desse depurativo. Ele mesmo, Loureiro, tinha-se curado radicalmente de um dartro na perna esquerda. Na sua opinião o vinho de caju era muitíssimo superior à salsa, ao iodureto e à quanta panacéia receita-se por aí sem resultado.

O amanuense, porém, afirmou que seu mal era no pulmão, que já tinha consultado o Dr. Melo.

— Não te fies em médicos do Ceará, que dão cabo de ti. Olha o Calado, conferente d’Alfândega: diagnosticaram-lhe lesão cardíaca e o pobre homem, coitado, estirou a canela no Rio de Janeiro com uma enfermidade nos rins. Uns ignorantes, seu João, uns magarefes da humanidade é o que eles são. Meta-se no vinho de caju, que é o grande remédio para as moléstias do sangue.

Enquanto os dois, sentados no sofá, de pernas trançadas, iam discutindo banalidades, Lídia e Maria do Carmo comunicavam-se como boas amigas, numa intimidade franca e expansiva, abrindo-se mutuamente em confidências de colegial felizes. Primeiro tinham percorrido toda a casa. Lídia mostrara à outra todos os seus confortos e todas as suas jóias desde a cama de casados, ampla e fresca, até o presente de noivado, um magnífico jogo de pulseiras cravejadas de pérolas em forma de serpentes, o guarda-vestidos, os vidros de essências, os chapéus, as toalhas de labirintos, feitas no Aracati e tudo o mais que o Loureiro comprara com aquela bondade ingênua que o caracterizava.

Maria via tudo aquilo embasbacada, com surpresas no olhar, falando por monossílabos, examinando com inveja cada objeto que seus olhos deparavam, achando tudo muito bom, muito fino, de muito bom gosto. E a outra: olha isto, vê lá, aqui está o meu relógio d’algibeira, comprado no Jaques, tu ainda não viste a minha cinta de tartaruga; é verdade, e o meu tinteiro de prata, presente do Carvalho, e o meu leque de plumas...

Foram sair na sala de jantar, e aí, uma defronte da outra, em cadeiras de balanço, Lídia entrou indiscretamente a falar no Zuza.

— Ainda o amas muito? Então fica para a volta?...

Maria não compreendeu a pergunta.

— Como fica para a volta?

— Sim, de certo, creio que vocês não se casaram...

— Não te compreendo?

— Olha a engraçada!... Quer um peitinho?!

— Por Deus como te não entendo...

— Pergunto se o casamento é quando o Zuza voltar, não te faças tola...

— Quando o Zuza voltar?

— E então?...

— Mas voltar d’onde?

— Estás hoje muito misteriosa, minha espertalhona;

Maria teve um pressentimento: — "E o Zuza tinha ido embora?"

— Pois não embarcou anteontem?

Olhavam-se as duas sem se compreenderem, como se estivessem jogando o disparate.

— Para onde?...

— Para o Recife, ora adeus! para onde havia de ser?... A estas horas anda ele bem longe do Mocuripe.

Maria do Carmo empalideceu, como se acabasse de saber uma notícia funesta.

— Estás gracejando, murmurou com a voz trêmula.

— Não sabias?

— Não, não sabia...

— Pois a Província deu notícia.

— Infame.

E Maria não pode resistir à comoção que lhe sufocava, os olhos umedeceram-se-lhe de lágrimas, e desatou a chorara com o rosto mergulhado no lencinho de rendas.

— Que é isso, criatura? Tolice!

Lídia não contava com o pieguismo da amiga.

Ora adeus, o rapaz havia de voltar, que asneira! Era preciso paciência para tudo, e então? Ela mesma, Lídia, não esperara pelo Loureiro quase um ano? Tolice...

— Deixa-te d’isso, filha, vamos tocar piano. Estás nervosa.

Inclinada sobre a rapariga, que soluçava como se lhe tivesse morrido alguém, Lídia procurava carinhosamente arrancar-lhe o lenço dos olhos , alisando-lhe os cabelos, comovida.

— Então?... Levanta, vamos para a sala, que está mais fresco. Não sê criança, vamos...

— Sou uma desgraçada, disse Maria enxugando os olhos com força.

— Que desgraçada o que, estás feito criança... Isso acontece a todo mundo, criatura. Vamos, vamos p’ra sala. Já viste o meu álbum.

Maria levantou-se devagar, preguiçosamente, com as faces escarlates, as pestanas úmidas, assoando-se; e arrependida.

— Não, fiquemos aqui mesmo, depois se toca. Não foi nada — um nervoso...

— Bem, mas não te ponhas a choramingar por aí, como uma tola. Tu sabes, a família do Zuza não quer o casamento, quem sabe se o rapaz foi obrigado a embarcar à última hora? Espera cartas, se ele não te escrever, então sim, podes ficar certa de que não te ama.

Tornaram a sentar-se.

A criada, alta como um pau de sebo, veio saber da Sra. D. Lídia "se a sopa era de macarrão ou de arroz".

— De macarrão mesmo, Tomázia, faça de macarrão, mas faça uma sopa gostosa, ouviu?

E para a amiga:

— Não imaginas quanto aborreço a cozinha. Há dias em que não ponho lá os pés. Felizmente o Loureiro arranjou uma boa criada, que até já foi cozinheira do Dr. Paula Souza, da Estrada de Ferro. É assim como viste, seca e ríspida, mas uma excelente criada. Faz tudo a meu gosto.

— Mas, então o Zuza embarcou, hein? tornou Maria voltando à conversa.

— Não falemos mais nisto. estás hoje muito sentimental e eu não quero que passes mal o resto do dia em minha casa, sabes? Não falemos mais nisto.

— Mas, diz-me... aquilo foi uma tolice... diz-me, não o viste mais?

— Não. O José Pereira é que está muito nosso amigo, sabes? Tem vindo aqui duas vezes nesta semana. E que amabilidades, menina, que delicadezas! Ofereceu-se para apresentar o Loureiro ao presidente da Província, mandou-nos outro dia um camarote para o teatro...

— E tu, como passas a nova vida?

— Perfeitamente. Desejava antes morar na cidade, mas o Loureiro é muito impertinente, diz que prefere isto — paciência. Agora quando vierem os filhos, isso então... Por enquanto estou muito satisfeita. Um bocado triste isto aqui no Benfica, mas ..vai se passando. É verdade, precisas vir passar uns dias comigo, estás muito magra; o ar aqui pé melhor que na cidade. Tens ido à Escola?

— A Escola qual! Passei oito dias em casa como, uma freira, sem ir à parte alguma. creio que não irei mais àquilo.

— Eu, no teu caso, faria o mesmo. Agora, então, que estou casada, olha...

Fez um gesto com as mãos.

— ... bananas, não estou para suportar desaforos d’aquela canalha. Porque tudo aquilo é uma canalha, menina. Fazes muito bem em não pondo os pés naquela feira de reputações. As raparigas ali aprendem a ser falsas e imorais. Conheço muito o tal Sr. Berredo, o tal Sr. Padre Lima e mais os outros todos. O próprio diretor... eu cá sei...

Maria estava mais consolada ante a solicitude da amiga. Achava-a mais amável, mais expansiva.

Foram para a sala de visitas, de braços trançados nas cinturas, e Lídia cantou ao piano o Non m’amava, a velha romanza sentimental, que encheu de lágrimas os olhos de Maria.

E os dias passavam uns após outros, longos, intermináveis, como uma repetição monótona que faz mal aos nervos.

Vieram as festas, o Natal e o Ano Bom.

Maria do Carmo, cada vez mais magra, sentido-se definhar dia a dia, descrente de tudo, tinha agora uma certeza cruel que a torturava barbaramente, a certeza que estava para ser mãe, de que muito breve o seu nome estaria completamente desmoralizado. Sentia bulir dentro de si uma coisa estranha, que lhe incomodava como uma perseguição, e mais de uma vez, nos seus momentos de grande desânimo, atravessara-lhe a mente a idéia sinistra do suicídio. Sim, preferia matar-se a assistir às exéquias de sua honra na praça pública, em todas as ruas da cidade, em todas as bocas. estava irremediavelmente perdida, não tinha pai nem mãe, nem alguém que lhe fosse sincero no mundo, pois bem, acabar-se-ia de uma vez, sem ter que dar satisfação a ninguém por isso. Era um pecado, mas não era uma vergonha, porque não teria que corar nunca diante da sociedade, como uma criminosa, como uma culpada. Não, mil vezes, não! Outra, que não ela, preferisse arrastar uma existência vergonhosa, a morrer fosse como fosse.

Uma ocasião estava prestes a ingerir uma dose de láudano, mas faltou-lhe coragem. Começou a imaginar mil coisas. Via-se morta dentro de um caixão azul, de mãos cruzadas sobre o peito, numa sala onde havia gente chorando e um crucifixo à cabeceira entre velas de cera que ardiam lugubremente. Que horror! recuou espantada fazendo em pedaços o vidro de veneno.

Às vezes, vinham-lhe resignações, um desejo místico de ser irmã de caridade, depois que desse à luz a criança, arredar-se para sempre do mundo e ir viver na Santa Casa de Misericórdia, curando os enfermos metida nas suas vestes azuis, debaixo de um grande chapéu de asas, dedicar-se toda a Deus, como uma santa.

Dera para devota; não faltava à missa aos domingos, na Sé, vestida com muita simplicidade, e rezava sempre, com uma contrição admirável, ao deitar-se e ao acordar, defronte da oleografia do Coração de Jesus.

Foi em casa da Lídia que ela teve a certeza de achar-se grávida. Até então ignorava certos segredos da maternidade, certos fenômenos da fisiologia amorosa, que nunca lhe tinham dito, nem mesmo as companheiras de Escola, "aliás versadas em assuntos dessa natureza".

Tinha ido passar uma semana com a amiga, nas festas, e um dia a Lídia disse-lhe que "estava pronta" e que ela, Maria, havia de ser a madrinha do primeiro filho.

Então, aproveitando a oportunidade, Maria do Carmo quis saber como as mulheres tinham certeza de estar grávidas.

Lídia explicou tudo minuciosamente; a suspensão das regras, os antojos, as dores madre e, finalmente, os primeiros movimentos do feto no útero. Depois leram junto a Fisiologia do Matrimônio de Debay, que o Loureiro tivera o cuidado de comprar, especialmente o capítulo — da calipedia ou arte de procriar filhos, o mais importante, na opinião da esposa do guarda-livros.

— Todo meu desejo, dizia a Lídia com o livro sobre a perna, todo meu desejo é que o pequeno, menino ou menina, se pareça com o presidente da província. Ainda no último baile em palácio não tirei os olhos dele.

E Maria nesse dia, ao jantar, teve um grande enjôo da comida, cruzando o talher logo no primeiro prato, inapetente. Não havia dúvida, "estava pronta" também como a Lídia, e esta idéia tornou-se uma idéia fixa, de todos os dias, de todas as horas, de todos os minutos. Ela com um filho, Jesus! Decididamente estava perdida para sempre no conceito honesto da gente séria. Não passaria mais de uma simples rapariga que "já teve filho"! As revelações de Lídia tinham-lhe aberto os olhos; sentia agora perfeitamente bulir a criança, e até, na sua alucinação, parecia-lhe ouvir os vagidos do bebê. Se fosse possível evitar o seu desenvolvimento, matá-lo mesmo no ventre... Mas não: seria uma barbaridade, uma malvadez; Afinal de contas era seu filho, de suas entranhas, embora fruto de um crime...

E Maria agoniava-se, fazendo essas considerações e mil outras conjecturas absurdas, sem coragem de esperar o desenlace d’aquele drama secreto que ela era a protagonista. Vivia assombrada e não raro caía num desfalecimento que lhe tirava a ação do corpo e do espírito.

Por uma espécie de instinto, previa todas as conseqüências do seu estado e pressentia o desprezo acerbo que havia de lhe cair sobre a cabeça, implacavelmente, como uma grande mão de ferro, esse desprezo convencional e hipócrita de uma sociedade ávida de escândalos, cevando-se da desgraça alheia, banqueteando-se em torno da vítima, como para torturá-la ainda mais.

E enquanto a Lídia ganhava, com sorrisos de triunfo, as simpatias dessa mesma sociedade que há poucos meses a maldizia, ela, Maria do Carmo, sobre cuja reputação pairava a sombra de uma nódoa, via-se pouco a pouco ludibriada, tratada como uma mulher a toa, num abandono completo, sem amigas, sem honra, pobre, sem pai, nem mãe, mísera cadela que a gente enxota a pontapés de dentro da casa por safada e indecente.

12

O Zuza abalara de feito numa sexta-feira, dias depois do casamento da Lídia. Por toda a parte se comentava, com risinhos sublinhados, o escandaloso namoro com a normalista, e o pai, o coronel Souza Nunes, escrupuloso em tudo que lhe dizia respeito, exigiu do filho que embarcasse no primeiro vapor, sob penas severas.

— Mas, meu pai...

— Tenha santa paciência, vocemecê embarca ou diz porque não embarca. Fala-se em toda a cidade nos seus namoros com a rapariga e eu não quero, não consinto em semelhante escândalo. Sei muito bem o que isso é. Não pode ser boa mãe de família uma rapariga educada em companhia de um safardana reconhecido, como o tal Sr. João da Mata. Prepare as malas e deixe-se de histórias, que é perder tempo.

Nestas condições o estudante não teve jeito senão resignar-se ante a vontade imperiosa do pai e anunciar ao José Pereira o seu embarque d’aí a dois dias.

— De acordo, aprovou o redator da Província. Deves tratar quanto antes da tua formatura e então podes voltar ao Ceará e fazer um figurão na nossa magistratura, que já conta em seu seio bons talentos, rapazes da tua estatura, inteligentes e resolutos.

Sentia muito que o Zuza não se demorasse mais algum tempo, mas, enfim, como esperava em breve tornar a vê-lo formadinho, com o seu título de bacharel, "dando sorte" na capital cearense, que diabo! era preciso abafar a saudade e consolar-se.

O Zuza, porém, estava contrariado. Agora que as coisas corriam-lhe tão bem, que a rapariga entregava-se-lhe de corpo e alma, é que o obrigavam a embarcar da noite para o dia, sem ao menos ter tempo de despedir-se d’ela, de dar-lhe uma beijoca, um abracinho sequer, às escondidas. É verdade que o seu amor não era lá para que se dissesse um amor extraordinário, uma dessas paixões incendiárias que decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua simpatia por aqueles olhinhos ternos como os de uma santa, lá isso tinha... Tão boas as palestras ao meio-dia, na Escola Normal, enquanto as outras normalistas divertiam-se lá para dentro à espera dos professores! Uma gentinha levada da breca, essas normalistas ! Com que facilidade a Maria do Carmo, aliás, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face para beijar e escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se fosse outro, até já podia ter feito uma asneira... Arrependia-se agora de não ter aproveitado os melhores momentos... Grandíssimo calouro! podia ter desfrutado a valer.

E concluiu, preparando-se para sair:

— Ora sabem que mais? Há males que vêm para bem. A cidade está cheia do meu nome e do nome da rapariga, o verdadeiro é ir-me embora mesmo, sem dar satisfação a ninguém. Meu pai é um homem de juízo. Eu podia muito bem engraçar-me deveras com a menina para casar e depois... sabe Deus as conseqüências. Já se foi o tempo de um homem sacrificar posição e futuro por uma mulher pobre. Concluo o meu curso e sigo para a Europa, é o verdadeiro, ora adeus!

Enfiou a manga do redingote, atabalhoado, e saiu a despedir-se dos amigos.

Toda a cidade soube logo da viagem intempestiva do estudante. A notícia propalou-se com a rapidez do fogo em palha, por todos os botequins, por todos os cafés e restaurantes, avolumando-se, como se se tratasse de um grande acontecimento.

Quem o Zuza, o filho do coronel Souza Nunes? Então não se casava com a normalista?

— Por esta já esperava eu, diziam uns convictamente.

— E eu, repetiam outros.

— Pela cara se conhece quem tem lombrigas, seu Sussuarana, afirmava um sujeito reles na botica do Travassos. Aquele tipo sempre me pareceu uma bisca. Agora a pobre rapariga é quem fica por aí com a cara de besta, sem achar quem lhe roa os ossos.

— Pode dizer, seu compadre. Esses fidalgos o que querem é isso mesmo — desfrutar e pôr-se ao fresco. Todo nosso mal é recebermos em nossas casas qualquer sunga-nenén que chegue a esta terra. Nós, os pais de família, é que somos os culpados.

— E o compadre João da Mata o que pretende fazer?

— Eu sei lá, homem de Deus, aquele é outro...

A viagem imprevista do Zuza assumia proporções de escândalos. Nas fileiras políticas especialmente entre os partidos contrários à administração presidencial, alardeava-se o fato: que o rapaz era um produto da política do governo, que todos os amigos do presidente mediam-se pela mesma bitola, que era tudo uma súcia de bandidos de casaca, usurpadores da honra cearense, o diabo!

Os jornais da oposição rosnaram contra a moralidade dos governistas, responsabilizando o presidente pelo "desmembramento de caracteres" que ia pela sociedade cearense, alcunhando-o de negro Romão. Tal dizia que "S. Excia. era homem de costumes dissolutos, acostumado a beber cerveja nos cafés cantantes de Paris, e a passear de braço com as cocottes no Bois de Boulogne". Tal outro afirmava que " S. Excia. sabia manobrar perfeitamente um phateon, montava muito bem a cavalo, mas não tinha capacidade para dirigir os destinos de um país".

Insinuava aquele que "a viagem inesperada de certo bacharel por formar-se era um atentado contra os nosso brios e contra a moral pública", aquele outro confirmava que "a polícia devia dar caça a um tal Sr. bacharel de nome açucarado contra quem pesavam as mais sérias acusações no tocante ao seu procedimento para com a família cearense".

E toda gente sabia que se tratava do Zuza e da Maria do Carmo.

O estudante, azucrinado por todos os lados, numa roda viva de indiretas, indagava na Agência se o vapor já tinha chegado, esbaforido, às carreiras, doido por já se ver barra afora, debruçado tranqüilamente na amurada, a ver sumirem-se no horizonte, como visões de uma noite mal dormida, as areias do Mucuripe.

Uff! ... Estava cansado de suportar tanta sujidade! Decididamente não voltaria ao Ceará por preço algum. Diabo de província onde ninguém está livre da calúnia e da descompostura pela imprensa desde que não se submeta às imposições d’uma política de interesses pessoais.

Revoltava-se de novo contra o Ceará, contra os costumes cearenses, contra a política, "essa política sem ideal e sem patriotismo, que só servia de nos rebaixar, obrigando o indivíduo a vender-se por amor de sua mulher e seus filhos". Que diabo tinha ele com a política para que se viesse meter com sua vida? Só porque era amigo do presidente e filho de político? Sebo! Então não se podia ter amigos no Ceará, decididamente. E porque tanto barulho em trono do seu nome, porque não lhe diriam? Por causa de um simples namoro com uma pobre normalista sem eira nem beira? Era o cúmulo!

Com que deliciosa alegria ele ergueu-se da rede no dia do embarque, de manhã muito cedo, as malas no meio do quarto prontas, a passagem comprada no bolso, sem dívidas, sem compromissos, completamente pronto a deixar o Ceará. Quando vieram lhe chamar para o banho, às seis horas, já há muito estava de pé, em chambre, muito bem disposto, fumando o seu cigarro, passando uma vista d’olhos na maleta do camarote onde refulgia, numa frescura capitosa, a roupa branca — ceroulas, camisas, meias e toalhas de rosto — tudo arrumado cautelosamente, com um cuidado feminino, umas cheirando ainda a sabão, passadinhas a ferro outras.

Ah! ia deixando fora a Casa de Pensão. Tomou do livro que se achava sobre a mesa e colocou-o na maleta, ao lado, para ler na viagem.

Agora sim, não faltava mais nada. Só pedia a Deus que não chovesse, porque um embarque debaixo d’aguaceiro era um desastre horroroso.

De feito ameaçava chover. Era em Janeiro. Há dias caia sobre a cidade uma chuvinha sintomática de inverno, persistente e miúda, acompanhada de trovões longínquos, lavando a atmosfera, encharcando as ruas, alentando a população, enverdecendo as árvores. Os longos meses de seca iam ser compensados por uma abundância de chuvas consoladoras e refrigerantes. As manhãs iam se tornando frescas e já se viam passar, em tabuleiros, feixes de feijão verde e hortaliças para feira.

Zuza tinha aberto a vidraça para consultar o tempo. Os telhados, defronte, estavam úmidos e o céu de uma cor esmaecida de safira, arqueava-se, sem uma nuvem na penumbra da ante-manhã. Passava um fiscal da Câmara com o seu boné, jaqueta com botões dourados, chapéu de chuva debaixo do braço, assoando-se com estrondo.

— Tudo fechado ainda, com efeito! pensou o Zuza. Entretanto já tinha dado seis horas!

Entrou e pôs-se a reler as cartas de Maria do Carmo, trincando a ponta do bigode.

"Meu querido Zuza..."

Nesta normalista jurava como não tinha ido ao Club Iracema; que era uma calúnia o que tinham dito ao estudante..

"Tua querida Maria".

Zuza meneou a cabeça com um ar de riso e abriu outra.

"Zuza do meu coração..."

Nest’outra Maria lamentava que o rapaz não tivesse aparecido na Escola Normal na véspera.

"Tu já não me amas, Zuza; não queiras matar-me de saudades. Todos os dias peço a Deus por ti e tu nem sequer lembras da tua futura esposa!"

E assim, uma a uma, o futuro bacharel releu toda a série de cartas da normalista, enfeixando-as depois, dobradinhas, com um cadarço.

Que horror, meu Deus, quanta banalidade! E ela a tomar a coisa a sério! A gente sempre faz asneiras de criança nessa idade!...

E guardando o maço de cartas no fundo da maleta: "— Magnífico rol de asneiras para fazer rir a rapaziada de Pernambuco."

As horas passavam vertiginosas. A claridade larga do sol penetrava no quarto pela janela aberta, como um visita sem cerimônia, anunciando um dia seco e esplêndido.

Já lá fora, na rua, recomeçava a labuta quotidiana. Um barbeiro, que morava defronte, amolava as navalhas assobiando um trecho de fandango, com as pernas cruzadas, de frente para a rua. Passavam burricos com cargas d’água, procurando as coxias. Meninos apregoavam o Cearense.

José Pereira ficara de vir almoçar com o Zuza, mais cedo que de costume, para seguirem juntos ao ponto de embarque.

D. Sofia andava numa faina, da sala para a cozinha, com os olhos empanados de lágrimas, esquecendo as suas dores de útero para pensar no Zuza, no seu filho que ia embora.

O coronel, esse não se alterava, calmo, consultando o relógio de vez em quando, bem humorado nesse dia, passeando o seu grande ar de homem independente.

Cerca de 10 horas entrou o redator da Província anunciando a chegada do vapor.

— A que horas sai? perguntou o estudante.

— Está marcado para as duas. Em todo o caso é prudente ir mais cedo...

— Sem dúvida. Ao meio dia, o mais tardar, devo estar a bordo. Qual é o vapor?

O Espírito Santo.

— Diabo, uma carroça!

José Pereira entrara para o quarto do Zuza, e, sentado na larga rede de varandas encarnadas, perna traçada com desembaraço, passeava o olhar morosamente naquele tabernáculo de rapaz solteiro, agora em desordem, como um ninho abandonado, enquanto o estudante acabava de fazer a toilette no aposento contíguo.

Na frente das duas malas, uma grande e outra menor lia-se em letreiros impressos e nítidos — José de Souza Nunes — Recife. Perto estava um caixote com livros e o mesmo dístico no alto.

— Dez e meia! fez o redator levando o relógio ao ouvido.

Imediatamente surgiu o Zuza lépido, esfregando as mãos, como se saísse de um banho de perfumes.

— Prontinho, disse ele.

E misteriosamente:

— Então, com quê a canalha tem-se divertido à minha custa, hein?

— Como assim?

— Oh! homem, inventaram por aí que eu deflorei a Maria do Carmo. Não leste o Pedro II e o Cearense?

— E tens culpa no cartório?

— Não, c’os diabos, mas isso é um horror! Ninguém pode mais gracejar, ninguém tem mais o direito de chegar-se a uma rapariga honesta sem intenções malévolas. Cada vez me convenço mais de que isso é uma terra selvagem, seu José Pereira! Isto é um país de bárbaros. Vocês da imprensa devem civilizar este povo, devem ensinar a esta gente a pensar e a ter juízo, do contrário...

— Mas, fala a verdade, interrompeu o outro com um ar de riso malicioso; tu nunca...

— Palavra como não! É verdade que dei alguns beijos, mas o nosso namoro nunca foi além disso, mesmo porque, tu compreendes a minha responsabilidade... Depois, só fui a casa do padrinho umas três vezes, no máximo. Calúnia, simples calúnia...

— É. Este povo é muito indiscreto...

— Indiscreto não — alcoviteiro, mentiroso, ignorante e besta, é o que ele é.

E depois de uma pausa:

— Bem, vamos almoçar que deve ser hora.

Uma vez instalado a bordo, o seu camarote do lado do mar, o futuro bacharel, de binóculo a tiracolo e boné, respirou a todo pulmão e foi assistir da tolda a manobra do vapor que suspendia o ferro.

Eram duas em ponto. O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava sobre o quebramar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe do mar havia uma algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para a terra puxados a remo, destacando a bandeira do escaler Capitania do Porto.

Zuza assestou o binóculo, e, sacando do lenço, correspondeu aos acenos que lhe faziam de um escaler que se afastava. sentia agora uma ponta de saudade a espiaçar-lhe o coração. Através da confusão que reinava no seu espírito, como um ponto luminoso por entre um nevoeiro denso, via mentalmente e nitidamente a cabeça branca de D. Sofia, de sua boa mãe, e só então sentiu que uma coisa prendia-lhe ao Ceará, atraía-lhe a essa terra que ele tanto detestava. Não sabia mesmo porque, por índole, por sistema, por pedantismo.

— Sim, queria mal ao Ceará, mas não podia esquecer nunca o Ceará, porque nele ficava a sua velha que ainda há pouco, abraçando-o entre lágrimas, metera-lhe no bolso uma nota de cem mil réis e cheirando a fundo de baú.

Boa e santa velhinha! pensava ele, e já não enxergava coisa alguma, porque os vidros do binóculo estavam úmidos e enevoados.

Depois, quando o vapor singrava em direção ao Mucuripe, começou a examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral de Fortaleza, desde o farol do Mucuripe até a Ponta dos Arpoadores...

Primeiro o farol, lá muito longe, embranquecido, cor de areia, ereto, batido pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague até a cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edifício da alfândega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tão feio que o mar parece recuar com medo à sua catadura.

Noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia movediça que os ameaçava soterrar, uns já enterrados até a fronde, outros inclinados, prestes a desabar; o torreão dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo medieval, cinzento e esguio; o seminário por trás, no alto da Prainha, com as suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio Público, com seus três planos em escadarias; a S. C. de Misericórdia, branca, no alto; o Gasômetro; a Cadeia; e por ali fora o arraial Moura Brasil, invadido pelo mar, reduzido a um montão de casebres trepados uns sobre os outros...

— Sim, senhor, pensou o Zuza, bonito aspecto para se ver de longe, barra a fora..."

Dentro em pouco o vapor começou a tombar desesperadamente. Fortaleza já não era mais do que uma pintura microscópica diluindo-se muito ao longe na tinta alvacenta do horizonte...

... E só agora, três dias depois da partida do Zuza é que Maria do Carmo sentia a dor do seu abandono, ao mesmo tempo que adquirir a certeza esmagadora de que estava para ser mãe; sim, para ser mãe de um filho espúrio, concebido num momento de desvario, mal acordada de um pesadelo horrível. Era de mais, era! Se dissesse que ela tinha deixado seu quarto para ir ter à rede do padrinho, oferecendo-se-lhe como uma fêmea desavergonhada vá; era justo que caísse sobre si toda a cólera dos homens; mas, ao contrário, ele, o infame do padrinho, é que fora alta noite ao seu quarto, provocar-lhe, impor-lhe, para bem dizer, uma coisa d’aquelas, e ela, coitada, tão inexperiente, tão tola que nem ao menos tivera coragem para dar um escândalo, expulsando-o, como se expulsa um ladrão, dando-lhe com a mão no focinho, embora com sacrifício de sua vida.

Chegavam aos seus ouvidos, indistintamente, como um surdo rumor de cochichos, os ecos da maledicência. Na Escola Normal as outras raparigas atiravam-lhe indiretas fortes, que ela não tinha ânimo de repelir como dantes.

Viam-na triste, para um canto, muito desconfiada, com grandes olheiras. Todas notavam a alterações de sua fisionomia, e certo desleixo no trajar, que faziam dela uma outra Maria do Carmo, albardeira e insociável, inimiga da convivência das companheiras, egoísta, intratável.

— Aquilo é uma coisa... comentavam maliciosamente as normalistas. A Maria viu alma d’outro mundo, não é possível.

— Que o quê, menina, são desgostos de família. Dizem que o padrinho a maltrata.

— Quem, o João da Mata? Um grandíssimo miserável. D’aí talvez seja isso mesmo.

— Não se iludam, meninas, insinuou a zarolha, a Maria ficou assim depois que o Dr. Zuza foi-se embora. Ela d’antes era até uma rapariga muito alegre, vocês não se lembram?

— Coisas deste mundo, mulher, coisas deste mundo. Ninguém deve fazer mau juízo das pessoas.

O diretor um dia maltratou-a. Ao chegar viu desenhada na pedra da aula, a giz, uma obscenidade. Ficou furioso, disse muitas grosserias às raparigas e quis saber quem era a autora de semelhante indecência.

Silêncio profundo. Ninguém se atrevia a responder.

— Tenham a bondade de dizer quem fez isto! repetiu o diretor, e, de relance, viu, na última fila, um dedo que apontava para Maria do Carmo.

— Ah! foi a senhora, D. Maria do Carmo?

Maria empalideceu.

— Eu, não senhor!

— Tenha a bondade, faça o favor de vir apagar isto.

— Mas não fui eu, Sr. Diretor, tornou ela, erguendo-se.

— Embora, venha sempre: a senhora paga pelas outras.

— Não senhor, não posso responder por uma falta que não cometi.

— Não vem?

— Não senhor...

Toda a aula estava voltada para Maria do Carmo, medindo-a de alto a baixo, como se vissem nela uma transfiguração extraordinária.

— Então a senhora não vem? repetiu o homem, fazendo uma carranca medonha.

— Não senhor...

— Retire-se da aula! fez ele apontando a porta. A senhora é uma insubordinada, desobedeceu à primeira autoridade deste estabelecimento. Vamos, retire-se!

Houve um silêncio grave, e Maria, tomando os livros, séria e resignada, sem olhar para as colegas, retirou-se taciturna, ouvindo atrás de si o atrito da esponja na pedra.

E tudo mais era assim, sucediam-se as contrariedades como um castigo. Crescia-lhe na alma o desgosto, como uma nuvem que sobe no horizonte vagarosamente alastrando pouco a pouco toda a vasta cúpula do céu para se desfazer em chuva caudalosa. Tinha pena de não ser como as "outras mulheres", indiferente a tudo, até nos momentos mais difíceis da vida. Vinham-lhe às vezes alegrias intermitentes, uma resignação infinita animava todo seu ser, e dispunha-se a enfrentar todas as conseqüências do seu desatino com uma calma heróica, sem dar mostra da mais leve tristeza.

Nesses momentos abria-se em infusões de ingênua bondade para com D. Terezinha, procurando-a, puxando conversa, oferecendo-se-lhe para pentear o cabelo, gabando-lhe os vestidos, com uma humildade de escrava. Mas a madrinha, seca e indomável, aborrecia-se com aquilo, enfadava-se, sempre de cara fechada, respondendo por monossílabos às perguntas da afilhada. Quando amanhecia mal humorada, com as suas desconfianças, inquisilava-se demais. — "Deixe-me, criatura, deixe-me, por amor de Deus, oh!" Maria não dizia palavra, recolhia-se ao silêncio do seu quarto a costurar ou a ler o Almanaque das Senhoras por desfastio, para se distrair.

Entretanto João da Mata progredia no vício de beber aguardente. Andava agora muito chegado ao Perneta e ao Guedes, de quem se dizia amigo do coração.

A bodega do Zé Gato continuava a ser o ponto de suas reuniões, onde se demoravam às vezes até alta noite a jogar a bisca num esquecimento absoluto de família e de deveres, saturados de álcool,, lívidos à luz de um miserável candeeiro de querosene. O triste ordenado que lhe pingava no bolso em cada fim de mês escorria-lhe por entre os dedos como azougue, transformando-se em fichas na banca de jogo e desaparecendo como por encanto, sem que ele próprio soubesse disso.

Quantas vezes sucedia entrar em casa sem um real no bolso para mandar à feira no dia seguinte!

Era preciso então tomar dinheiro a juros aos agiotas, correr toda a cidade atrás de alguém que lhe emprestasse alguns mil réis até ao fim do mês, contar as suas necessidades, as pequeninas misérias domésticas, inventar situações incríveis. Porque os seus "amigos do coração", o Perneta e o Guedes da Matraca, também eram pobretões e perdulários, sentiam muito as necessidades do Janjão, mas não podiam lhe ser úteis por forma alguma, senão dando-lhe a ganhar no jogo quando a sorte o protegia.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


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